28/09/2010

Os padeiros retomam a cena

Ontem, no Entre Estantes & Panelas, um time de padeiros de primeira linha - Guillaume Petitgas, Rafael Rosa , Rogério Shimura, Vittorio Lorenti – assumiu a discussão sobre essa coisa com a qual convivemos em silêncio: o pão nosso de cada dia. Luiz Américo também mostrou grande desempenho conduzindo a mesa, não só por conta de suas habilidades e espírito conciliador, mas também por ser um fanático por pães artesanais, produzir o seu próprio fermento, e ser capaz de levar sustos por conta disso.

Minha impressão geral é que, depois de décadas de seqüestro pela industria de panificação, especialmente submetida à dinâmica dos supermercados, o pão renasce como nunca deveria ter deixado de ser: um produto simples, elementar, mas que exige cuidados atentos por parte de quem faz justamente porque, para produzir excelência, não pode ser relegado a um processo industrial sem perder qualidade.

Variam as farinhas, varia a umidade do ar, a qualidade do fermento, a temperatura – e tudo isso deixa sua marca no pão. Por isso ele deve ser conduzido a bom termo pelo mestre padeiro.

O novo culto ao pão evidencia, talvez, uma saturação geral do público com os malabarismos técnicos da nova gastronomia. A volta do simples efetivamente simples. E vemos que, atrás dele, vem os profissionais que dominam esse processo de produção sem muita coisa a nos dizer sobre os aspectos eminentemente técnicos. Como numa corporação medieval, sabem que o bom pão se faz assim e pronto.

Mas ficou claro, nos debates, quais são, para eles, os pontos fundamentais: a importância do glúten como estruturador do pão, o que põe em segundo plano as farinhas de milho e de mandioca; a qualidade da farinha; o fermento “natural” (cuja microbiologia não conhecem a ponto de discorrer mais detalhadamente); a barreira do gosto da clientela, viciada no pão industrial; etc.

Depois do evento, na saída, pude conversar mais demoradamente com o jovem padeiro francês, Guillaume Petitgas, de Brasília. Falamos sobre mandioca no pão e ele me asseverou que já fez pão com 5% de fécula de mandioca e que o produto resultante era ótimo.

Pela oportunidade, reproduzo abaixo o texto que publiquei há anos na Tropico sobre a polêmica tentativa do Deputado Aldo Rabelo de obrigar a inclusão dessa farinha no chamado “pão francês”.

Mandioqueiros, trigueiros e comunistas

Lobby do trigo perpetua, no Brasil, a dualidade histórica do alimento popular e das elites

Vivemos a era das cotas. Num país de negros e mulatos mais ou menos branqueados, com uma elite envergonhadamente branca, se discute como, afinal, uma certa parcela dos de baixo pode vir a subir. Parece que o caminho mais curto é levá-los à universidade. E é nas cotas também que o deputado Aldo Rebelo pegou uma carona para propor projeto de lei obrigando que 10% da farinha utilizada no “pãozinho francês” seja a fécula de mandioca. Por esse caminho, argumenta o deputado comunista, teríamos a vantagem do aumento da renda dos pequenos agricultores. Não se chega à universidade, mas vive-se um pouquinho melhor. Grita geral, ou quase.
Diz a mitologia da Revolução Francesa que, às massas esfomeadas que clamavam por pão, Maria Antonieta respondeu que comessem brioches. Deu em guilhotina. Sempre que se discute pão parece que há pescoços postos a prêmio.
Mas qualquer expert em pâtisserie ou panificação sabe que o uso de duas farinhas combinadas pode dar muito bom resultado, e o próprio leitor pode fazer o seu teste, adaptando uma boa receita de brioche 1 - talvez o mais “nobre” dos pães, como Maria Antonieta bem sabia-, incorporando 10% de amido de mandioca. Sabe-se também que, além do amido, a qualidade do pão depende do fermento e dos demais elementos, além do modo de fazê-lo.
Mas persiste até hoje entre nós o dualismo do trigo e da mandioca, como já se manifestava no Brasil quinhentista, reproduzindo padrões alimentares europeus que se bifurcavam no “pão branco”, exclusivamente de trigo, e no “pão preto”, de centeio, cevada ou farinha de trigo de baixa qualidade. Mais tarde, pela carência de cereais na Europa, ao pão preto incorporou-se a farinha de milho americano, sendo chamada, em Portugal, farinha “meada” (trigo e milho), “terçada” (trigo, milho e centeio) ou, ainda, “quartada” (milho, trigo, centeio e cevada).
O que aconteceu na colônia foi que o pão popular reinol abriu espaço à mandioca. Era postura obrigatória que à escravaria se concedesse o “direito” de plantar umas tantas covas de mandioca, nos finais de semana, pois assim impedia-se que senhores de engenho, que não forneciam o necessário alimento aos seus escravos, os obrigasse a roubar das plantações da vizinhança para a própria subsistência, propagando os “daninhos ladrões formigueiros” 2. Aos índios, por sua vez, a farinha de trigo parecia indigesta e imprópria para o consumo.
Foi assim que o milho e a mandioca se firmaram como alimentação de animais, negros e índios, ficando a farinha de trigo de qualidade restrita às elites brancas. E, ao contrário do que a historiografia consagrou, ela já estava presente ao lado da prosperidade açucareira no século 16. Anchieta observava que "alguns ricos comem pão de farinha de trigo de Portugal, máxime em Pernambuco e Bahia, e de Portugal também lhes vêm vinho, azeite, vinagre, azeitonas, queijo, conserva e outras coisas de comer". Assim, ”a concepção simplista de uma adesão universal à farinha de mandioca por parte do povoador lusitano de 500 deriva de má leitura, dos primeiros cronistas” 3.
Por isso, quando o deputado Aldo Rebelo propõe o amálgama de duas farinhas, seguindo a diretriz comunista de que haveria uma ampla distribuição de renda, visto que a mandioca é produto típico da pequena propriedade familiar, mal sabe que está mexendo também numa poderosa matriz ideológica de exclusão, enraizada no gosto alimentar.
Mas as idéias não são coisas etéreas. Enraízam-se em interesses. O senhor Lawrence Pih, empresário pioneiro na adesão ao PT em tempos mais heróicos, ameaçou: se a lei passar, o seu moinho, o Pacífico (sic), faria na Argentina, e não aqui, um investimento de R$ 200 milhões! Assim, finalmente, depois de marchas e contra-marchas, os líderes da cadeia produtiva do trigo e o setor mandioqueiro chegaram a um acordo, anulando a obrigatoriedade da adição de mandioca à farinha de trigo. O lobby trigueiro venceu, mais uma vez, o partido dos mandioqueiros.
Antonio Carlos Henriques, da Associação Brasileira das Indústrias de Panificação, afirma que a obrigatoriedade da mandioca macularia o tradicional pãozinho francês. Sem a imposição, ao contrário, diz que a panificação poderá criar agora, livremente, o "pão brasileiro", produzido com amido de mandioca no lugar da farinha de trigo.
Mas as coisas não são assim, exclusivamente “culturais”. A Argentina, como se sabe, retirou o subsídio para exportação da farinha de trigo com o objetivo de ampliar a oferta interna e conter a inflação e pode, ainda, estabelecer cotas de exportação. Tais medidas beneficiam os moinhos brasileiros, que se queixavam da competição da farinha da Argentina, ainda que agora sejam obrigados a buscar trigo mais caro em outros países, como o Canadá e a Rússia. Para os moinhos, a iniciativa de Aldo Rebelo é um verdadeiro estraga-prazeres. E o recuo diante do projeto de lei 4.679 corresponde à segunda derrota da iniciativa de Aldo Rabelo, que já havia tentado aprovar algo semelhante em 2001.
Entende-se. Em 2006 estima-se que o Brasil importará 60% dos 10 milhões de toneladas de trigo que consome, ao custo de US$ 800 milhões. Não é pouco. O projeto de Aldo Rabelo distribuiria parte desse dinheiro aos produtores de mandioca do país todo, o que não acontecerá.
De fato, é uma perda expressiva da perspectiva social. A mandioca é toda ela produzida em pequenas propriedades. Mas também o trigo no Brasil advém da pequena propriedade, sendo que apenas 4,2% vêm de grandes cultivos. A diferença é que a mandioca se cultiva no Norte e Nordeste, o trigo no Sul. Além disso, o trigo é para o comércio, enquanto a mandioca está atrelada à subsistência, e o seu uso na panificação representaria uma grande expansão da sua produção.
O “não” à mandioca, liderado pelos trigueiros, baseia-se em argumentos quase sempre falsos. O primeiro deles é a qualidade do pão, coisa que o leitor pode derrubar em sua própria cozinha. O segundo, parcialmente verdadeiro, é nutricional. A mandioca, de fato, possui menor teor de proteína: 2,2 g contra 12 g do trigo, em cada 100 gramas de pão. Mas o pãozinho francês não é, nem real nem idealmente, a principal fonte de proteína do brasileiro.
Em terceiro lugar, os trigueiros não estão preocupados com a qualidade do pão. Prova é que o bromato de potássio, elemento cancerígeno que simula a maciez e o aspecto crocante da casca do pão, apesar de proibido, é amplamente utilizado na fabricação do pãozinho francês, sendo que tanto o Sindicato da Indústria de Panificação e Confeitaria quanto as autoridades sanitárias fazem vistas grossas para o delito.
O pior argumento, porém, é o de que o mercado deve escolher o pão que deseja, e o pão de trigo puro é o melhor produto, não se justificando uma reserva de mercado para a fécula de mandioca. Trata-se de um sofisma, pois o pãozinho francês não é uma escolha livre. Ele é regulado por leis e, há cerca de um ano, o próprio governo flexibilizou o conceito de “pãozinho francês” ao admitir, para baixar o seu preço, que ele possa ser vendido por quilo, e não mais por unidade padrão. Antes, era obrigatório que o pãozinho francês possuísse 50 gramas; agora não, segundo norma do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial.
Então, esse pão proletário, de “cesta básica”, atende mais ao custo da dieta popular, à inflação, do que a um suposto sabor eletivo dos consumidores. Igualmente falso é dizer que, para o uso da mandioca, é preciso que os chefes criem o “pãozinho brasileiro” que caia no gosto popular. O “gosto popular” já estava testado antes da generalização do uso da farinha de trigo.
O nosso pão branco, chamado “pãozinho francês”, adquiriu esse nome não por se decalcar em qualquer receita francesa, mas por imitação elitista de final do século 19, quando o pão branco de casca dourada -de aparência similar à baguette francesa- parecia indispensável para constituir, aqui, modos civilizados de comer. Não havia, contudo, padronização de farinhas.
A farinha de trigo puro, com as especificações hoje existentes, é produto que se desenvolveu no Brasil apenas após a Segunda Grande Guerra Mundial, amplamente apoiada nos programas norte-americanos de ajuda aos países da América Latina e de acordo com os interesses dos grandes moinhos de trigo de capital norte-americano.
O pãozinho francês é, ao mesmo tempo, expressão do avanço da industrialização das matérias-primas da panificação e signo da dependência. Não tanto do paladar, mas do big business. O trigo, pouco a pouco, e pelos subsídios que recebia, foi expulsando da dieta matinal brasileira tanto os produtos de farinha de milho quanto os de farinha de mandioca.
Esse processo de branqueamento social do pão culminou no monopólio dos grandes moinhos. Hoje são raros os padeiros que façam o pão como expressão de uma arte ancestral, como nas velhas padarias. O pão é fruto de uma mistura preparada pelos moinhos e que já chega pronta nas padarias, onde se acrescenta apenas água e se assa o dito “pão francês”. O volume de produção nas padarias também diminuiu, e a profissão de padeiro praticamente desapareceu quando os supermercados avançaram sobre o comércio do pão. Assim, as velhas padarias, agora mais com cara de lanchonetes, desaprenderam a fazer o pão. Delas não sairá, portanto, o “pãozinho brasileiro”, segundo o nacionalismo oportunista da Associação Brasileira das Indústrias de Panificação.
Ainda que o “pão social”, com fécula de mandioca, tenha sido momentaneamente enterrado, fica a questão da nacionalização dos amidos e, sem dúvida, o seu preço e o gosto serão a sua alavanca.
O pão de queijo, que aos poucos vai conquistando mercado, mostra que o gosto popular não é tão ortodoxo quando prefeririam os panificadores trigueiros. Além do queijo, em sua composição entra justamente a fécula de mandioca.
Por outro lado, a Embrapa tem mais de 200 variedades de mandioca já identificadas. Muitas com sabores bem particulares. Mal se conhece os mistérios gustativos da mandioca para dizer que ela não serve ao pão nosso de cada dia.

4 comentários:

Carlos Alberto de Lima disse...

Pois é... essa "coisa" chamada de pão de supermercado tem chegado às raias da saúde pública. A ANVISA deveria até atuar no sentido de definir melhor o que é isto que fazem nas padarias dos supermercados. É incrivel o que fazem com uma coisa tão simples que mistura farinha, fermento, água e sal. Inventaram uma tal de prémistura (o básico seria farinha e sal já que para pão pra que misturar mais coisas?) que no final dá um pão com validade inferior a 2, talvez 3 horas.
E todos os que fazem pão de qualidade sabe que para ter sabor ele precisa destas 2 ou 3 horas para "os sabores se assentarem" e você poder sentir a plenitude dos ingredientes.
Mas o que tem ali naquela mistura somente é capaz de fazer um pão de vida curta, sem sabor, sem consistência, quase um paciente terminal.
Não tenho os mesmos conhecimentos técnicos dos citados lá em cima mas tenho me esforçado pela leitura, aprendizado e prática a resgatar os processos antigos de fabricação. Apenas tentativa e erro e os resultados aparecem. Os sabores voltaram à minha casa. Aqui comemos pão. Com certeza!

COMIDA FALA - Karen Monteiro disse...

Achei interessante o tema... ainda mais, se considerarmos as pesquisas que apontam o crescimento das "padarias" que, ao seu turno, ampliaram o leque de "oferta de produtos". Todavia, padaria sem pão é complicado! Risos... daí a importância do tema. Eu sou uma consumidora confessa do pão... que para mim é sempre "do dia"... de "dada dia"... risos...

Abraço querido
Karen Monteiro

Claudia disse...

Enquanto lia o artigo pensei na hora no pão de queijo, claro, você o mencionou no final. Mas pensei que pão de queijo fosse uma paixão nacional, não é? Só aos poucos vai conquistando o mercado? Puxa, lembro do Itamar Franco ainda presidente divulgando a receita dele na televisão. Pensava eu que o pão de queijo era uma consolidada alternativa para dar-mos um pé na b. dos trigueiros.

Me lembro, eu era criancinha e meu avô trazia uns pães de queijo enormes de padaria, borrachudos de doer, mas eu amava.

E os pães de milho puro e água? A broa e as broinhas sem adição de trigo? Outro dia li este artigo e fiquei intrigada para experimentar fazer mas ainda não ousei.

http://www.ouropreto-ourtoworld.jor.br/broa.htm

Farinha de milho especial para broas também pode se consolidar como alternativa para a agricultura familiar e para os moinhos, não? Mas eu não sei do que estou falando. Asso pães mas entendo nada da lógica político-social das farinhas.

C.

padeiroartesanal disse...

Belo texto que nos permite uma série de interpretações e conclusões.
Fazer um evento, um debate para se falar do simples pãozinho já é um alento, muito positivo mesmo.Na verdade, não temos no Brasil uma cultura dos pães. Temos uma série de excelentes revistas culinárias no país e apesar de algumas delas estarem no mercado há dez ou vinte anos, pouco ou quase nada abordaram até aqui para falar do pão. Há hoje em todas elas um caderno, um encarte, uma quase nova revista com dezenas de páginas para se falar de vinhos, formamos enólogos, sommeliers e os padeiros, estes sempre serão tratados como padeiros, simples padeiros?
Mas como ser um bom padeiro sem ingredientes que nos levem ao bom pão. A vinicultura nacional investe pesado em novas tecnologias e já podemos degustar excelentes vinhos nacionais graças às pesquisas, investimentos e estudos.A Embrapa afirma que o Brasil tem dezenas de espécies de mandioca, mas nas feiras e mercados encontramos apenas uma. Os moinhos produzem apenas um tipo de farinha, segundo eles com balanceamento médio que permita que com ela se faça pães. Como fazer bons pães sem as farinhas de melhor qualidade? Há na Embrapa alguma pesquisa de melhoramento da farinha de mandioca para uso em panificação? Portanto, esta busca pelo pão de qualidade superior deve ser sim exercitada, mas ela vem revestida de uma ducha de água fria ao percebermos o quanto o mercado está engessado quanto a estes parâmetros. Procuramos ingredientes de qualidade e não encontramos. Recentemente procurei uma das maiores escolas técnicas do país para fazer um curso de pães. O instrutor simplesmente não sabia fazer pães, errou as receitas e teve de ser substituído às pressas. Então, toda esta discussão com relação ao bom pão, fica capenga muito capenga por total falta de bases para uma reflexão que leve efetivamente a resultados, bons resultados.
Poderemos e teremos sim o dever de evoluir muito nesta área no país. No entanto enquanto continuarmos a achar que o melhor pão é o Francês da padaria da esquina e que o melhor hamburguer do mundo é feito com o pão de hamburguer do Mc Donald, francamente, precisamos mesmo é evoluir nossa cultura gastronômica antes de mais nada.De que adianta este discurso de uso da farinha de mandioca em pães se não melhoramos e estudamos a farinha de mandioca para se fazer bons pães? Na gastronomia podemos sim criar sempre coisas novas e boas mas precisamos dispor de ingredientes da mais alta qualidade para tanto.
Temos muito, muito que evoluir.E em áreas onde muitas vezes não temos como operar. Temos simplesmente que aceitar o que o mercado nos oferece!

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