21/11/2009
Dá gosto
A imprensa especializada devia prestar mais atenção no que se passa no Brasil a gosto. Mas, como o cardápio muda bimestralmente, imagino que a atenção para cada nova onda resultaria em algo que contraria a suposta “justiça jornalística”, que se mede em centimetragem de notícias e não quer privilegiar alguém com excessos (a justiça como "rodizio").
Ana Luiza Trajano é das pessoas que mais se dedicam à pesquisa de ingredientes. Ela vai atrás, arruma fornecedores e se supre do suficiente para manter o cardápio por dois meses. Então, ali, come-se coisas interessantes e raras no mercado paulistano. Têm-se uma amostra diferente de Brasil. No cardápio gaúcho, anterior a esse paraense, havia um excelente arroz cateto polido, quando em São Paulo só se encontra o integral, mais voltado para um paladar natureba.
Agora, no cardápio paraense, temos excelente bolinho de piracui (“areia de peixe”, em tradução sugerida por Gilberto Freyre) empanado em farinha de tapioca que “estoura” como pipoca, acompanhado por desnecessário molho rose; delicada costelinha de tambaqui com salada e tutu de feijão manteguinha de Santarém; filhote com crosta de castanha do Pará e aviú, raízes e tubérculos (mandioca, mandioquinha e batata-doce), além de molho de açaí; e um pato no tucupi com jambu. De sobremesa, pudim de bacuri com creme de puxuri e calda de limão cravo.
Ana Luiza trabalha na linha de metaforização culinária, se assim posso me expressar. O melhor exemplo, nesse cardápio, é o filhote frito acompanhado pelo molho de açaí que lembra remotamente o peixe frito com açaí que se come no Pará. Um uso “salgado” do açaí a que os paulistanos, que o consomem como “energético”, com açúcar, não estão acostumados.
O pato no tucupi revela uma técnica de cocção mais elaborada do que se encontra no Pará: ele é assado e remete ao confit, não ao cozido como em Belém; o jambu marcante, inclusive com a inclusão de uma flor, que é muito mais “elétrica” do que as folha dessa erva.
Achei especialmente bem resolvida a sobremesa. Um bom aproveitamento do bacuri em pudim, com a calda do puxuri (Licaria puchuri-major), planta descrita por von Marthius, e que, salvo melhor juízo, aparece na cena paulistana pela primeira vez – excetuando rápidas aparições em cardápio que Thiago Castanho (do Remanso do Peixe) executou em São Paulo para públicos privados. No Pará o puxuri tem uso medicinal e em banhos de cheiro, mas não culinario. Seu aroma situa-se entre o anis estrelado e a pimenta Jamaica.
O que é notável é que a referência a esse ingrediente surgiu numa matéria de Janaina Fidalgo, quando ainda trabalhava na Folha de São Paulo (27/08/2009) e três meses depois já está em experimento no Brasil a gosto.
Provavelmente Ana Luiza Trajano “erra mais” que outros cozinheiros, pois se expõe bastante através dos seus experimentos com produtos regionais, numa atitude diferente da maioria dos chefes que prefere trabalhar os ingredientes na senda segura da tradição. Eis aqui um bom exemplo onde o "erro" é o caminho mais provável do futuro acerto; bem diferente do "erro" de quem não consegue decalcar o estabelecido pela tradição.
Acredito que o caminho de Trajano será longo, na mesma direção de uma culinária brasileira renovada e “reencantada”, como a crítica já percebe no trabalho de Roberta Sudbrack quando põe a mão no quiabo ou no chuchu. E sabemos que o reencantamento do Brasil de comer depende da Roberta, da Ana Trajano, dos meninos do Dois - cozinha contemporânea e de uma infinidade de outros que não aceitem o estabelecido como o limite da imaginação.
Como Hervé This faz o favor de nos lembrar, a “cozinha artística” só aparece quando consegue se libertar do pré-estabelecido pela tradição e se aventurar na inovação ou criação propriamente dita; quando é possível topar com um frango assado melhor que o simples frango assado que trazemos como ideal dentro de nós.
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