O aprendizado de um ofício tem lá seus rituais. O cozinheiro do Antigo Regime era um sujeito que aprendia a profissão nas guildas, trabalhando depois nas casas dos nobres. Pouca coisa se podia comercializar diretamente, na rua. Com a Revolução Francesa, esse quadro mudou, estabelecendo-se a liberdade comercial. Mas, o que mudou dentro das cozinhas?
O mito do “grand chef” burguês, que começou com Carême, logo se propagou como ideal e modelo de sucesso profissional. Afinal ele, de criança abandonada, tornou-se o “cozinheiro dos reis e rei dos cozinheiros”. O protótipo do self-made man da cozinha de todos os tempos.
Carême organizou a cozinha como uma brigada guerreira. O “chef” é o general de exército. Daí, criou-se a convicção que, para ser chef, é preciso primeiro obedecer e, nesse período, aprender a mandar e a cozinhar.
Mas o princípio da formação baseada no reconhecimento da desigualdade de conhecimentos, fundamento da hierarquia, continua, ainda hoje, a presidir a formação dos novos profissionais de cozinha – apesar do quanto aprendem em escolas de gastronomia.
Diante de um chef reconhecido pelo mercado, a bagagem cultural dos futuros profissionais vale nada ou quase nada. A figura do “estagiário” é central nas cozinhas dos restaurantes. Aos ex-alunos das escolas falta a “prática”, e eles estão dispostos a tudo para adquiri-la. Um verdadeiro mercado de “estágios” se organiza à margem dos restaurantes, onde o valor de cada estágio não é dado pelo saber culinário do chef, mas pelo sucesso comercial do seu empreendimento.
A necessidade dos jovens exibirem nos curricula uma lista ampla de “estágios” em restaurantes reconhecidos – para que, num mercado competitivo, tenham maiores chances de emprego – acaba por criar uma casta de verdadeiros escravos da cozinha. Além, é claro, de um mercado de favores.
Nos melhores restaurantes da Europa, dos EUA ou do Brasil é assim que funciona: trabalham de graça, em geral um curto período, que atinge no máximo três meses, e seguem para outros estágios. Uma enorme rotatividade de mão-de-obra e, no final dessa corrida, a exibição das “medalhas” amealhadas. Os chefs, por sua vez, têm convicção de que estão fazendo um grande favor para esses jovens.
Este é um ponto de vista. Mas há outros possíveis. Os jovens se portam como “escravos da profissão” e, para torná-la suportável, até com alegria, revestem o trabalho do sentido de “missão”. Os chefs se “sacrificam” para ensinar. O resultado é uma parcela considerável, e permanente, de mão-de-obra gratuita e de grande rotatividade. Quando surge alguém que se destaca, é logo contratado. Mas os “escravos” às vezes superam 30% da força de trabalho!
A mão-de-obra gratuita baixa o preço do produto e, na ponta, o cliente também se beneficia, muitas vezes sem saber, dessa escravidão na cozinha.
A idéia de “sustentabilidade”, que sempre parece tão nobre, não precisa incluir as relações sociais por trás da produção gastronômica?
21/12/2009
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4 comentários:
Ótimo. A propaganda, particularmente a criação publicitária, me serve de paralelo, militante que fui da área por tantos anos, responsável pela Bolsa de Emprego do CCSP pela década de 80 afora. É tudo muito parecido, só muda o CEP.
Nem sempre a enorme quantidade de estagiarios faz o preço baixar. Estagiei em um onde a grande maioria era de estagiários e para jantar la nao seria menos de 300$. O nome do restaurante e do Chef era maior do que qualquer quantidade de estagiários.
Ah, e é bem complicado ser estágiario escravo, já que gastronomia é um dos cursos mais caros. Na anhembi ano que vem vai para 1980$.. E a gente ainda tem que aceitar trabalhar de graça!
@umnariznomundo
Esta é uma realidade na gastronomia, o mais incrível é que mesmo passando por tudo isso o real cozinheiro aceita os desafios, a "escravização" e continua, seguindo em frente para um dia se tornar o que deseja.
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