O natal é um conto comestível. Inevitável passar por ele. “Sei não, mas, pelo jeito, não vai comer o peru de natal...”, assim se diz, indicando que o sujeito parece estar no bico do corvo. Só a morte liberta do natal, marco temporal e gastronômico: ele e o peru.
Pessoalmente dispenso o peru, ou melhor, a cornucópia da qual ele faz parte em parceria com o presunto tender. Tudo o mais, à mesa, se organiza em torno desse núcleo.
Tender is the night, em meio às cascatas de fios de ovos, compotas de pêssego, de abacaxi, de figo verde; as ameixas secas sem caroço e a indefectível farofa enriquecida com nozes, passas Corinto e variantes. Não há outro momento no calendário culinário onde seja tão estreita a associação entre carnes e sabores doces.
Mas antes dos anos 1960 não havia esse hábito no Brasil. Preferíamos o leitão e as carnes mais firmes e rijas, em preparações clássicas; ou mesmo o peru, embriagado de cachaça para amaciar a carne, trôpego, encerrado no círculo de carvão traçado no chão do terreiro, de onde só saía degolado e depois do infindável desafio do “glú-glú-glú” com as crianças de plantão. As mães, tias e avós a ralhar do alpendre por irritarem o peru na circunspecção do seu derradeiro momento; o confronto entre a piedade e uma autêntica corida de toros infantil. Valia mais o espetáculo do que o peru em si – assado simplesmente, um frangão sem maior graça.
O peru industrial já vem temperado. Renunciar ao tempero doméstico é o mesmo que renunciar à família como átomo do gosto. Participa-se agora de um gosto geral, onde cada peru concreto é apenas uma fração do peru universal; cada família, um átomo da força de trabalho, e não é desprezível que ele tenha se tornado um presente das empresas para os seus funcionários às vésperas do natal. Cada um leva para casa uma fração do peru patronal: uniforme e justo, equânime no sabor.
Já o hábito do tender é estratagema criado pelos grandes frigoríficos que se instalaram no país no pós-guerra (aquela guerra mais antiga, quando não se duvidava que os americanos fossem “do bem”). O espírito prático o associou à essência do antigo leitão que tinha a inconveniência dos ossos e a dificuldade de se encontrar, na grande cidade, um forno para assá-lo inteiro. Leitões se derramavam dos fornos de padarias.
A preparação do tender, nos anos 60, era curiosa. Ele vinha embalado como presunto, sequer lembrando o rito sacrificial a que o peru e o leitão eram submetidos. O tender era cozido numa coisa chamada “cidra”, doce e bem diferente da cidra que se toma no norte da França. Depois, a pele do porco era quadriculada, caramelada e a peça levada ao forno. Um cravo em cada quadradinho, antes de servi-lo frio. E aquelas compotas todas.
O tender era a “nova tradição” do natal, ao qual faltava a velha tradição que o peru esbanjava. Este apareceu pela primeira vez nas mesas européias nas bodas de Carlos IV, em 1570, e se tornou comum a partir de 1630 substituindo, na Inglaterra, o ganso de natal. Nos Estados Unidos, foi popular desde a chegada dos primeiros colonizadores, especialmente no Tanksgiving Day, servido com torradas de pão de milho, castanhas, laranjas e molho de amoras.
Nos livros clássicos de culinária européia do século XX ele aparece em poucas receitas, em geral recheado com miga, castanhas e lingüiças. A associação com a castanha, o fruto por excelência da estação européia, lê-se no Ma cuisine (1934) de Escoffier; ou no Cuchiaio d´argento, de 1950. Escoffier acrescenta que os acompanhamentos do peru são os mesmos da carne de boi. Por isso é quase um mistério como ele se converteu no que é entre nós, especialmente pelos acompanhamentos. Em Dona Benta, edição de 1950, ainda não se associava o peru ao contorno doce.
A dupla peru-presunto tender compôs “a” celebração de natal quando o salgado se converteu em doce, o simples em complexo, a discrição e o comedimento em exageração. O tender e o peru afastaram o leitão do centro da mesa de natal de um modo que rompeu as ligações míticas com a sociedade rural.
A carnavalização do peru-tender surgiu graças à influência norte-americana, difundindo-se junto com a admiração pelo modo de vida norte-americano. O triunfo dos aliados na guerra e a promessa de bonança eram coisas próximas, quase sinônimos. O peru-tender, esse Plano Marshall culinário.
Mas os fios de ovos não vieram dos Estados Unidos. Entraram na composição para aterrissar a doçura no familiar, tradicional. Nos anos 1960, eles também estavam estranhamente presentes como décor do melão com presunto, que era moda.
O pós-Guerra criou a forma de celebração natalina que se popularizou como esse momento extraordinário quando o doce submete os salgados implacavelmente; quando se come muito além do necessário e razoável. Mas, como em todo carnaval, o exagero transgressor reforça a necessidade da ordem. Ao excesso do natal segue-se a dieta de privação. Por opção, entre os ricos; por falta de opção, entre os pobres.
23/12/2009
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3 comentários:
Dória, ótimo texto.
Imagino que você conheça O Suplício do Papai Noel do Lévi-Strauss. Seu texto me fez pensar naquela mesma americanização, a América invadindo a Europa com suas Coca-Colas, mas também transformando tudo que não é espelho...
Muito bom professor. Sentirei sua falta...
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