07/05/2010

Caminhos da construção da brasilidade - I

Em várias partes do país, vários restaurantes buscam se diferenciar trabalhando sobre as percepções da culinária brasileira. Dificilmente conseguem se afastar do mito modernista (segundo o qual nós somos a fusão do índio, do negro e do português), razão pela qual, quando o conseguem, a experiência é de grande valor.
Para a inovação, enfrentam dificuldades com o gosto do próprio público. Um bom exemplo disso é o restaurante “O Navegador”, de Tereza Corção, no Rio de Janeiro: em paralelo ao seu trabalho consistente com a mandioca e seus derivados, a cargo de uma Ong que fundou (Instituto Maniva), é visível a dificuldade em implantar em um cardápio exclusivo com essa orientação, pois a “culinária brasileira” é ainda obrigada a dividir com a “cozinha internacional” a preferência do seu público. Mas vários chefes, realizam experiências interessantes em seus estabelecimentos, mesmo quando elas não conquistam o coração dos seus cardápios (Roberto Smeraldi, Alquimistas na floresta, São Paulo, Amigos da Terra, 2005).
Como contraste, um lugar bastante próprio para se estudar as tendências modernas da culinária brasileira é a capital paulista. Talvez a razão disso seja a dimensão cosmopolita que a sua culinária acabou por adquirir, por obra e graça do gigantismo metropolitano. Nesse processo, seu desenvolvimento cortou os vínculos com qualquer cozinha regional própria (caipira ou caiçara) e passou a dar livre curso a vários estilos de comer entre os seus habitantes. Houve, de maneira involuntária, a perda do enraizamento étnico da culinária brasileira na medida em que a cidade oferece, de modo equivalente, várias outras opções étnicas banalizadas, distantes dos sentimentos que a forma tradicional de ancoragem culinária suscita. Assim, come-se à italiana, à francesa, à maneira japonesa, chinesa ou tailandesa – e mesmo à brasileira – com um sentido lúdico forte mas livre do compromisso cultural profundo com a origem dessas dietas.
Os sociólogos chamam a este fenômeno “desencantamento do mundo”, isto é, a perda da magia, do encanto ou sentido inerente às coisas; uma conduta que desvaloriza as emoções e a transcendência – um processo que caminha no sentido de conferir racionalidade a um mundo antes irracional e mágico.
Em termos simples, esse processo permite que as pessoas hoje se debrucem sobre os modos brasileiros de comer com interesse equivalente ao que devotam às cozinhas de outros países.
A rigor, o grande desafio dos cozinheiros que queiram trabalhar com ingredientes brasileiros – mesmo que em receitas tradicionais, apelando inclusive para aspectos extraculinários dessas receitas (a origem de candomblé da cozinha baiana, por exemplo) – é disputar o gosto do público no confronto com inúmeras alternativas que não possuem enraizamentos em nossa cultura.
Se o enraizamento brasileiro dos ingredientes pode ser convertido numa “vantagem competitiva” é preciso ver em que sentido esse confronto se processará e, para tanto, a atenção deve se voltar para as várias estilizações a que o conceito de “cozinha brasileira” vem sendo submetido. Em outras palavras, o “reencantamento do mundo” depende de um diálogo intenso entre ciências, técnicas, tradições e culturas que ponham em destaque aquilo que possa ser resignificado.

(Segue)

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