24/05/2010

Técnicas culinárias, técnicas do corpo & ferramentas

O corpo é o principal instrumento do fazer culinário. As ferramentas culinárias, da faca ao mais sofisticado equipamento utilizado na “culinária molecular”, são, em geral, expedientes que visam economizar gestos ou conferir-lhes maior precisão. Mas o empenho físico com destreza é o primeiro responsável pelos resultados alcançados, e não raro será também o modelo do desenvolvimento tecnológico.

Marcel Mauss definiu as técnicas do corpo como “as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo” e imaginou poder construir uma teoria sobre elas “procedendo do concreto ao abstrato, não inversamente”.

Nadar, marchar, fazer sexo e, claro, cozinhar, comer, mobilizam nossos corpos de diferentes maneiras, variando de sociedade para sociedade ou mesmo de geração para geração dentro de uma mesma sociedade. O Kama Sutra é, em boa medida, um tratado sobre técnicas do corpo. Assim como as codificações de gestos culinários feitas por Escoffier.

Mauss entende todos esses conjuntos técnicos como “montagens fisio-psico-sociológicas de séries de atos. Esses atos são mais ou menos habituais e mais ou menos antigos na vida do indivíduo e na história da sociedade”. Ele acha que a dimensão psicológica funciona como uma “engrenagem”, e não causas, exceto nos momentos de criação ou de reforma.

A educação técnica consiste em adaptar o corpo ao seu uso. A psicologia individual busca a adaptação e é comandada pela educação, pelo convívio. Mauss destaca, em particular, a educação para o “sangue frio”, para o perigo. Essa educação serve como um retardamento, ou inibição de movimentos desordenados e, portanto, permite uma resposta coordenada de movimentos coordenados que partem em direção ao alvo escolhido.

Em outras palavras, a sociedade permite a “intervenção da consciência”que, por sua vez, aumenta a segurança, a presteza dos movimentos, o domínio consciente sobre as emoções e o inconsciente. O que é feito de modo consciente será superior em relação os comandos inconscientes, tendo em vista o resultado perseguido.

Mas as técnicas podem ser analisadas também em função do seu rendimento ou destreza. Acabam gerando normas de adestramento humano, assim como fazemos com os animais. Homo habilis é o homem que “sabe como fazer”, independentemente da clareza do treinamento; assim como o animal faz coisas por “instinto”, isto é, por habilidade adquirida e transmitida em geral por imitação, mesmo que inconsciente. A transmissão da técnica com vistas ao seu resultado ou destreza, inclui uma série de detalhes inobservados e por isso seria fundamental nos debruçarmos sobre eles, desde a educação da criança. O fundamental é esse longo processo de se empenhar o corpo, como se fosse um simples instrumento ou uma sofisticada ferramenta, na realização de uma idéia ou projeto.

Essas teorizações de Mauss no seu ensaio “As técnicas do corpo” (1934) ficam ainda mais interessantes no domínio da culinária quando as associamos ao papel dos instrumentos e ferramentas no trabalho humano, conforme Darwin especulou em várias passagens de seu A descendência do homem (!871).

Um instrumento é uma coisa circunstancial que posso utilizar de uma maneira imanente. Apanhar um pedaço de pau para alcançar um fruta numa árvore, ou utilizar o mesmo instrumento para desfechar um golpe num animal ou num inimigo.

A ferramenta, ao contrário, é construída para uma finalidade. A faca, para cortar. O tacape, para a guerra, e assim por diante. Ela é uma forma que cristaliza uma finalidade e, assim, deixa de ser imanente. Transcende as circunstâncias particulares de uso, acumula em si os usos futuros. Opera como um símbolo numa linguagem que é muda. O modo como o homem empenha o seu corpo no uso de uma ferramenta é também uma técnica. Por exemplo, como cortar legumes.

As ferramentas propiciaram a evolução humana e, com ela, a transformação dos próprios gestos. Um animal não humano poderá fazer uso de instrumentos, mas jamais poderá fazer ferramentas, pois falta a ele a linguagem simbólica que permita lidar com situações hipotéticas, o que é a base do desenvolvimento ferramental. Por isso, para executarem funções novas, os animais necessitam milênios – para formar novos órgãos – ao passo que o homem faz isso numa mesma geração.

A culinária é um terreno onde muito freqüentemente as técnicas do corpo se combinam com o uso de múltiplas ferramentas, resultando em algo bastante complexo. E as culturas culinárias variam entre sociedades e entre épocas.

Muitas delas se perdem com o tempo. Por exemplo, como abater um frango, depená-lo e sapecá-lo ao fogo antes de iniciar a execução de uma receita qualquer. Os frigoríficos acabaram com isso e, diante de um frango vivo, a maioria esmagadora dos cozinheiros não sabe o que fazer, a não ser imaginar como prepará-lo a partir do momento em que seja disposto, morto e limpo. Um conjunto de gestos ou técnicas do corpo se perde quando a sociedade redefine o modo de produzir determinado bem comestível.

As pessoas com mais treino culinário sabem identificar visualmente um cozinheiro pelos gestos que eles fazem. Uma determinada maneira de pegar a panela, uma determinada maneira de argumentar com gestos angulosos cortando o ar, e assim por diante. São gestos ainda mais perceptíveis numa mulher do que num homem, visto que o treinamento profissional para cozinhar resume gestos desenvolvidos mais por uma cultura masculina do que feminina, de forma que contrastam bastante com o padrão gestual que a cultura espera de uma mulher.

Os gestos femininos estão ligados à culinária doméstica, os masculinos à profissional. Poucas são as exceções, como em alguns ramos da patisseria, onde muitos gestos permanecem “femininos”.

As culturas culinárias são conjuntos de técnicas do corpo, empenhadas ou não no uso de ferramentas. As ferramentas se modificam, suprimindo gestos ou ampliando os seus resultados a partir de procedimentos mais simples. Os cortadores de batata de hoje, por exemplo, dispensam o enorme treinamento que era necessário para fazê-las homogêneas.

A “revolução técnica” pós-gastronomia molecular esfacelou uma série de gestos culinários. Ferramentas novas (inclusive químicas) se interpuseram entre o cozinheiro e o produto de uma maneira também nova: muitos produtos não são atingíveis exceto através delas. Técnicas complexas (como produzir baixas temperaturas) aliviaram o empenho do corpo (atenção, administração do fogo, etc).

Em geral as ferramentas se desenvolvem para aumentar a produtividade do trabalho culinário. Mas nem sempre é assim, como a “descoberta” casual do microondas. Talvez por isso mesmo ele seja tão subutilizado, domesticamente ou em restaurantes. O seu desenvolvimento não atendeu a necessidades do trabalho culinário, para apoiar ou aliviar o empenho técnico do corpo num produto. Afinal, nos milênios anteriores nunca se havia experimentando cozinhar de dentro para fora da matéria-prima. O microondas veio de fora da lógica da cozinha.

Talvez por isso existam tantos livros de “receitas para microondas”, buscando introduzi-lo nos espaços de trabalho culinário, em contraste com as obras quase inexistentes que ensinem a cozinhar num forno convencional ou numa panela. Todos sabemos o quanto seria absurdo um livro de “receitas para facas”. As ferramentas simples são incorporadas ao trabalho como extensões do corpo. As complexas encontram maior dificuldade.

Há também ferramentas que incorporam gestos inúteis, como o movimento em “8” que certas batedeiras mantêm. Está provado que isso não faz sentido, mas o gesto está lá, mecanizado e eletrificado, como a demonstrar que a “tradição”, em cozinha, tem dificuldade em abrir passagem para os novos conhecimentos.

Por essas razões é que cozinhar – especialmente “cozinhar bem” – é saber empenhar o corpo no trabalho culinário cujo resultado é socialmente esperado, muito mais do que “seguir” qualquer receita, pois esta jamais substituirá a destreza no empenho do corpo – a não ser num nível tecnológico muito elevado, como no uso do microondas, quando basta “apertar um botão” e ler afirmações sobre os resultados que provocará em determinadas matérias-primas.

1 comentários:

Breno Raigorodsky disse...

Beleza de artigo, Cadoria.
Disseca o ato de cozinhar em um conjunto de gestos concatenados que permitiram o homem a ritualizar o ato de produzir bem o que come.
Localiza com mente aberta onde a troca deste artesanato vai se perdendo em confronto com a maquinaria de cozinha que abrevia o gesto e torna tudo mais robotizado.
Evidentemente, o importante na cozinha é o produto final e não o ritual e o gesto que o sustenta.
Mas sou de uma geração que privilegia o gesto. Lembro de um livro da Flamarion sobre comida japonesa que mostra um cozinheiro "desencapando" um nabo que cai sobre a mesa como se fosse um papel higiênico, de tão uniforme e fino que é o resultado de seu ato. Ao lado do nabo, uma cenoura já previamente "desencapada" com igual perfeição. Foi durante anos meu ideal de cozinha..

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