07/12/2010

O terroir e sua determinação


Essa coisa mística que é o terroir, segundo a concepção tradicional francesa, e da qual abusam especialmente os enólogos, permite, contudo, uma mirada científica.
No estudo da evolução das espécies Darwin teve muita dificuldade em determinar como os caracteres eram transmitidos de uma geração a outra. De fato, ainda faltava o domínio da genética. Mesmo assim, tentou esboçar uma teoria – a hipótese da pangênese - que se encontra em Variation of animals and plants under domestication (1868), mas que não foi bem recebida e hoje, de fato, parece estapafúrdia.
Quando ele morreu, vários cientistas tentaram explicar essa lacuna, inclusive voltado aos argumentos de Lamarck. Esta “retomada” é denominada “neolamarckismo” e um dos seus expoentes foi Ernst Haeckel.
O neolamarckismo de Haeckel advoga o primado das influencias ambientais na transformação dos seres vivos. Para ele, basicamente, se trata de um processo de adaptação. Vale a pena reproduzir aqui um trecho onde define a adaptação como fruto da nutrição:
“Dando a nutrição como causa determinante da adaptação, considero esta palavra no seu sentido mais lato, e designo assim a totalidade das variações materiais que o organismo sofre em todas as suas partes sob o influxo do mundo exterior. Para mim, a nutrição não é somente a ingestão de substâncias realmente nutrientes, mas a influência da água, da atmosfera, da luz solar, da temperatura, de todos os fenômenos meteorológicos designando-se pelo nome de clima. Compreendo por nutrição ainda a influência mediata ou imediata da constituição do solo, da habitação, da ação variada e importante que os organismos circunvizinhos exercem, sejam eles amigos, inimigos ou parasitas, etc, sobre cada planta ou sobre cada animal. Todas essas influências e outras mais importantes afetam o organismo na sua composição material e devem ser consideradas debaixo do ponto de vista das permutas materiais. A adaptação será o resultado de todas as modificações suscitadas nas trocas materiais do organismo pelas condições externas da existência, pela influência do meio ambiente”.
Com o conhecimento da genética de Mendel, e posteriormente a 1910, os argumentos de Haeckel caíram por terra. Sabe-se que o ambiente, no máximo, “seleciona” na espécie os caracteres genéticos existentes no seu estoque e, muito raramente, constitui ainda uma pressão que favorece mutações. Não faz sentido, portanto, a sua afirmação: “Segundo a preponderância da luta pertence à hereditariedade ou à adaptação, persiste a forma específica ou se transforma numa nova espécie. O grau de fixidez ou de variabilidade das diversas espécies [...] é simplesmente o resultado da preponderância momentânea exercida por uma das duas forças formadoras”.
O que isso tem a ver com o nosso assunto? Simplesmente não se entende a construção das variedades das espécies domésticas, animais e vegetais, sem a forte interferência da seleção artificial ou metódica. As características das vinhas – e suas variedades apreciadas como cabernet, merlot, nebiollo, etc – são antes produtos da ação humana, escolhendo, ao longo dos anos, os caracteres uteis e, através de vários expedientes, procurando transmiti-los às novas gerações. Até mesmo as relações com o solo e o clima são construídas intencionalmente. No pólo oposto está, por exemplo, um produto como o tartufo bianco d´Alba. Ele é “inadaptável” a outros ambientes, até agora. Mesmo assim, “produzi-lo” depende da habilidade humana, inclusive na seleção dos comportamentos instintivos de porcos e cachorros.
Desse modo, mesmo no centro de uma categoria da qual tanto se abusa, como terroir, está o trabalho humano. Inclusive o que se considera produtos da “floresta virgem”. Recentemente se descobriu que os ajuntamentos de castanha do Pará, de cacauí, bem como o desenvolvimento do fruto da pupunha, resultam de ações humanas milenares, no manejo florestal das espécies.
Para que serve, então, a noção de terroir?
Em alguns poucos casos estudados para a Europa foi possível detectar que, por trás da delimitação intuitiva do território, havia relações objetivas entre a espécie (vinhas do Loire) e o clima, ou o produto manufaturado (uísque, presunto pata negra, etc), e o território. Mas, repita-se: em apenas poucos casos.
Na maior parte dos casos é um conceito com cidadania apenas no marketing. Ajuda a comunicar exatamente esta mística que tanto se valoriza, que são as relações “mágicas” entre as coisas de comer e seu território. Por isso vão se criando tantos territórios demarcados, ou “denominações de origem” que servem aos propósitos da venda. Mas a magia precisa de feiticeiros, não de cientistas. A magia dos feiticeiros é a gastronomia. A ciência é outra coisa.

(Segue)

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