07/07/2011

Leitor de 5ª - que braseiro, que fornalha!

Demorou, mas acertou um tiro. Comida vem com brasa na capa. O uso de lenha ou carvão em pizzarias e churrascarias. Uma boa reportagem de Luiza Fecarotta que saiu em campo ouvindo os senhores (e senhora) do fogo. Conseguiu ouvir até Ademar Sguissardi, um dos personagens brasileiros mais interessantes e importantes da restauração, acostumado a viver na sombra, longe dos holofotes que normalmente iluminam os pratos à mesa dos paulistanos. Ouviu também Paola Carosella, herdeira do fogaréu místico de Francis Mallmann no Brasil. (“El fuego tiene su propio idioma, que se habla en el reino del calor, el hambre y el deseo. Habla de alquimia, de misterio y, por sobre todo, de posibilidades.Va más allá de las palabras y de la memoria, viene de un tiempo muy anterior a mis recuerdos” escreveu Mallmann, à maneira de um Gaston Bachelard).

A matéria mostra como os empresários estão prontos para abandonar a lenha e o carvão em favor das calorias do gás. Desdenham não do poder calorífico da madeira em suas duas formas (lenha e carvão), mas da idéia comum de que acrescente aroma ou sabor às pizzas e churrascos. Vivemos a época do char-broiller.

Só Paola (diz-se Páola e não Paôla) Carosella destoa, defendendo a magia da lenha. Pois ficaria melhor em matéria sobre o mesmo tema apresentado pelo Paladar, cujo partido é o oposto daquele de Comida: em vez de temperar a carne, a geração de novos assadores prefere temperar a brasa! O belga Peter de Clercq explica que mesmo a lenha tem lá suas variedades peculiares que transmitem qualidades ao alimento.

Esse é um tema muito bom. E mostra a rara vantagem de ler os dois suplementos, pois é da discussão desses dois partidos que sairá o entendimento sereno do leitor. Deve ter sido coincidência que tenha surgido no mesmo dia em jornais concorrentes...

Mas não é coincidência que a última página de Comida seja um anúncio de página inteira do fermento Fleischmann, querendo tirar a sua casquinha sobre a capa da semana passada. Aquela da Dna. Lucilia Diniz. Afinal, as 100 padarias que esta senhora visitou usam o fermento Fleischmann. Será? A Aracaju, que ela não gostou, pelo menos para alguns pães, faz o seu fermento. Naquela linha hoje preferida de “levain” artesanal.

Eu já falei sobre essa prática comercial em relação às revistas mensais de gastronomia e teve gente que não gostou. Entre jornalistas designa-se isso com um nome feio. Faz supor coisas que ninguém consegue provar e, por isso, é melhor silenciar.

A capa de Paladar, assinada por Patricia Ferraz, me dá o que pensar. Esteve na Toscana e aproveitou para nos apresentar uma variedade local de porco, o cinta senese. Mas se equivoca de cara ao apresentar esse senhor: “cinta senese é uma espécie (sic) suína que produz embutidos excepcionais”. Na página interna a mesma coisa: a “especie” entrou em ritmo de extinção e foi recuperada. Confunde-se espécie e variedade, num típico problema pré-darwiniano.

Ainda nessa linha, diz que a raça “é muito antiga (e) que nunca foi geneticamente modificada”. Ora, não existe animal doméstico que não tenha sido alterado em sua genética através da seleção artificial. Está lá n´A origem das espécies (1859). Depois, há um texto de Roberto Smeraldi sobre o mesmo animal, onde se lê: “lenta recuperação dos ambientes naturais (...) e trabalho de genética fizeram com que...”. Afinal, a editoria acha que essa é questão objetiva ou de opinião pessoal?

Diz Patricia, ainda a favor do seu porco, que nele “gordura é gordura, carne é carne”; não estando entremeadas, não se misturam. Será assim a composição dos tecidos musculares da espécie em geral ou dessa raça ou variedade?

Há também na matéria uma certa infantilização de linguagem que já era notável em alguns trabalhos publicados em Paladar. É como se o porco falasse: “não há salame como o meu”; “oinc: mio prosciutto è meglio”. Poucas crianças devem ler Paladar. Eu só queria ser tratado como adulto, com linguagem adequada na leitura e sem brigadeiro na sobremesa...

Mas o que mais me incomoda na matéria é ir tão longe para captar um problema que poderia ser visto aqui mesmo no Brasil, com o desaparecimento quase completo das raças domésticas de porco por conta da supremacia da produção de grandes frigoríficos, que privilegiaram raças mais fartas em carne do que gordura. São nove as raças suínas brasileiras ameaçadas por essa opção da grande indústria de alimentos. Olhar “para fora” ainda parece mais fácil, e conveniente, do que “olhar para dentro”. Tem a ver, é claro, com a “economia” editorial. Sair experimentando a salumeria artesanal gaúcha, dessa sem SIF, feita muitas vezes com porcos de raças brasileiras e gordas, é custoso...

Hoje, apenas a EMBRAPA mantém plantéis dessas raças brasileiras em seu banco genético. Quais são essas raças é algo que se encontra em livro que ela editou, chamado Animais do descobrimento: raças domésticas da história do Brasil. Dentre elas, por exemplo, a raça Nilo, que é um porco descendente do porco preto ibérico - o mesmo do qual se faz o afamado presunto “pata negra”. Conhecer tudo isso é custoso, exige viajar o Brasil.

Boa matéria de Juliana Cunha sobre “Os degraus para ser chef”, em Comida. Os degraus da fama são também os da desilusão para essa classe média disposta a gastar uma grana preta em faculdades de gastronomia para “chegar lá”. Uma das razões é que os alunos nem sempre chegam ao mercado preparados. Outro dia, um aluno da melhor faculdade de gastronomia de São Paulo me contou que questionou a professora que ensinava “métodos de cocção”. Perguntou sobre cocção que não passa pelo fogo, que era o que a professora ensinava. A reação foi irada: “esqueça essas bobagens! Não existe cocção fora do fogo!”. Well...

Bem que falta uma reportagem boa sobre o que essas escolas ensinam, analisando o currículo e a prática. Mas os jornais não são tão isentos em relação às faculdades de gastronomia a ponto de poderem se desenvolver com liberdade sem ferir interesses dessa classe de anunciantes. Gostaria de estar errado.

Bom texto de Josimar sobre a futura edição de Gastronomika em Donostia (San Sebastian). É a vez da América Latina: Peru, Brasil e México. Queiramos ou não, a gastronomia é como o jazz: precisa de temas básicos para desenvolver suas improvisações.

Nina Horta em mais um dia de Clarice Lispector: o tema é “empregada”. Como sempre, um texto imperdível, cutucando o preconceito que cerca essas trabalhadoras que as madames sequer sabem como chamar.

Luiz Américo vai revisitar o Pomodori, sem Jefferson Rueda. E chega à mesma conclusão a que chegou Josimar Melo semanas antes: ainda não!

1 comentários:

Léo disse...

A reportagem do Paladar sobre lenhas também demonstra como o olhar fora é muito mais comum em relação ao olhar para dentro: para garantir a "autenticidade" os proprietários cogitam importar lenha da Espanha (que obviamente acharam ser muito custoso) ou da Argentina. Importar madeira para queimar é uma idéia de jerico e o jornal deveria apresentar conhecimentos nacionais para fazer este contraponto, como quais madeiras e métodos são utilizados por aqui. O café não é uma planta nativa, mas seus ramos são utilizados há muito tempo como lenha para cozinhar. Existe também métodos talvez únicos, como usar serragem moldada umida no fogão a lenha, em torno de uma garrafa, que quando removida, esta cava torna-se o lugar onde se inicia o fogo. Temos madeiras aromáticas por aqui, como o barbatimão, bálsamo e sassafrás que frequentemente são queimadas com esse objetivo. Sair de São Paulo e, ao invés de irem para Toscana, talvez devessem viajar também para o resto do Brasil.

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