No festival de Tiradentes, comi pratos com porco durante três dias seguidos, duas vezes por dia, se descontar o presunto do café da manha. Fiquei sensível ao tema.
Por outro lado, é muito curioso ver como surgem as modas culinárias e como, pouco a pouco, vão se insinuando no normal da vida. Espreitar esse processo pode ser instrutivo e revelador. Há algum tempo começou-se a falar na imprensa especializada sobre a excelência gastronomica do porco cinta senese, italiano de Siena. Agora, ele já chegou por aqui para saciar o apetite gourmand, deixando de lado o plano meramente discursivo.
O restaurante Friccò o servira durante um tempo. É um animal com denominação de origem, do qual se faz lombo, pancetta, bochecha, salames e presunto. Elogia-se nele a “qualidade da gordura e textura da carne”.
Esse porco andava à beira da extinção, como a maioria das nossas raças brasileiras domésticas. Sucumbia à ditadura das raças landrace e large white, desenvolvidas por dinamarqueses e ingleses, preferidas de 9 entre 10 frigoríficos do agribusiness mundial. Raças que geram mais carne do que gordura. Mas agora, com a “descriminalização” da gordura de porco, o cinta senese se recupera e vira coisa gourmet. Até mesmo a palavra “suino”, que envergonhadamente designava porco nos restaurantes e na imprensa, parece que vai recuando estrategicamente. Bacana que se possa experimentar o cinta senese no Friccó, que é um agente da culinária italiana.
Mas, e as nossas raças brasileiras? O que você sabe sobre elas? Onde pode comer esses porcos? Ou, antes disso, quais são essas raças? Vamos lá (tendo por fonte a Embrapa, em seu magnífico livro Animais do Descobrimento. Raças domésticas da história do Brasil):
1. Porco Canastra. Animais de tamanho médio, de origem Ibérica, desenvolvida a partir de uma raça portuguesa do Alentejo. Bom produtor de banha e toucinho, podendo atingir 150 quilos. É, porém, de baixa fertilidade.
2. Porco Caruncho. Porco pequeno, com peso médio entre 90 e 100 quilos, é um animal rústico, pouco exigente quanto à alimentação, de temperamento tranquilo e grande produtor de gordura. Era muito comum no interior de São Paulo, vivendo em chiqueiros no fundo dos sítios, alimentando-se de lavagem e soro de leite.
3. Porco Nilo ou Nilo-Canastra. Tamanho médio, peso entre 100 e 150 quilos, de origem ibérica. Grande propensão à gordura, produz muita banha e toucinho.
4. Porco Piau. Raça provavelmente desenvolvida no sul de Goiás, triângulo mineiro e oeste de São Paulo, com grande concentração na bacia do Paranaíba. Foi das raças mais difundidas no Brasil, sendo que hoje existem apenas alguns poucos antigos criadores. Também excelente produtor de gordura.
5. Porco Pirapitinga. Muito antigo na Zona da Mata de Minas Gerais, suspeita-se que tenha se originado nas fazendas da bacia do Pirapitinga, disseminando-se também pelo Espirito Santo. Porco de tipo asiático, de tamanho médio, de ossatura fina e bom comprimento. Podem tanto ser criados em pastoreio como em pocilgas. Apresenta boa conversão alimentar.
6. Porco Monteiro. Originado no Pantanal, a partir de porcos soltos das fazendas paraguaias durante a Guerra do Paraguai. Cruzou-se com porcos selvagens da região, sendo ainda encontrado solto e constituindo elemento da alimentação dos vaqueiros pantaneiros que os caçam “a laço”.
Pois bem. Eu pergunto uma coisa: por que raios vamos dar prioridade ao discurso marketeiramente articulado, que é sobretudo do interesse de empresários da agroindústria da região de Siena, em vez de nos ocuparmos da nossa própria porcaria? Um dos objetivos que a gastronomia deve perseguir é construir e manter a mais ampla diversidade possível. Os italianos estão fazendo a sua parte. E nós? É claro que é bem mais penoso "amassar barro", atrás de porquinhos fétidos, do que frequentar restaurantes com certo glamour, nos ditos "jardins" & periferias, para degustar fatias de porcos italianos.
Não se trata de nacionalismo de pocilga, evidentemente. Só que acho que esses nossos porcos, tão ou mais ameaçados de extinção do que o cinta senese, estão aqui, no quintal, pedindo para serem re-conhecidos no valor de sua gordura.
Comi muito Caruncho e Piau em minha infância e adolescência. E há alguns anos comi o Monteiro, cruzado com javalis, em Campo Grande, onde se oferece em churrascarias. Acredito que foi o melhor porco que jamais comi.
Nossos queridos jornalistas, gastronomos, chefs, chefinhos e chefetes, deveriam pensar nisso antes de colocarem na boca o cinta senese e sentenciar: “é o melhor porco do mundo”. Pode ser. Há que comparar - o que não é feito.
Até essa comparação, as sentenças a favor do senese serão como sentenças de morte para as raças de porcos que os brasileiros levaram vários séculos para selecionar e fixar os caracteres. Não é inteligente jogar fora esse imenso trabalho de seleção genética, feita no terreiro de casa. Raças recuperáveis, como o cinta senese.
P.S.: Cristiana Couto comenta o meu post de ontem (Leitor de 5ª), sobre o registro de sua resenha do livro de Manuel Querino. Me insurgi sobre a edição, ao lado da resenha, de uma “receita de caruru” de um restaurante de São Paulo que não guarda qualquer parentesco com a receita coligida por Querino.
Cris Couto transcreve no seu blog a integra da receita de Querino, e vale a pena ver o quão mais rica é. Mas ela justifica a receita “moderna” publicada dizendo: “é mais útil publicar aquelas que podem ser reproduzidas pelos leitores”. E é contra isso que me insurjo, pois um livro de caráter histórico como o de Querino tem valor não como guia prático, mas, sim, como testemunho das mudanças que o tempo impõe à culinária. O seu valor é dado pelo contraste com o que é feito hoje, por isso não aprecio as oportunidades que os editores criam para reafirmar as práticas presentes, apoiando-as em mera leitura pessoal do passado.
No mundo editorial brasileiro isso tem sido muito comum, e tenho registrado os casos mais graves aqui no blog. Há um livro sobre antigos cadernos de receitas da região de Campinas que faz isso; outro, sobre o caderno de receitas da família de Monteiro Lobato que foi “adaptado” por cozinheiro do Vale do Paraiba, e assim por diante... Historiografia não é culinária; que fique claro.
Bem, se voce for passear no blog da Cristiana Couto, aproveite para ler o que fala do cinta senese (e também se guarde para o que ela promete publicar em breve sobre o mesmo assunto). O tema vai dar pano pra manga.
02/09/2011
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1 comentários:
Dória, excelente post, porém desculpe a minha ignorância, aonde conseguimos encontrar essas carnes. Infelizmente como cozinheiro e pessoa não consigo ter tempo de cozinhar, administrar, ir ao mercado e tudo mais. Sei que é importante buscar tudo isso, mas não seria o caso também de termos isso a nossa disposição , termos fornecedores. Assim como hoje temos fornecedores de pirarucu, carnes de caça e etc... Para colocar esses pratos no cardápio, precisamos ter fornecimento com padrão, qualidade e constância. Corrija-me se estiver errado, precisamos de oferta para haver procura. Abraço
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