O Pe. João Daniel estava enganado. A mandioca não foi obstáculo à civilização, conforme imaginou no longínquo século XVIII. Os primeiros geoglifos foram encontrados, no Acre, na segunda metade dos anos 1970, como fruto involuntário do avanço das frentes de expansão agrícolas do período militar - época na qual a arqueologia não imaginava que os chamados “povos da floresta” tivessem constituído qualquer civilização mais sofisticada. Além dos povos da Cordilheira dos Andes, da Amazônia, só se considerava os centros cerâmicos de Santarém e Marajó. O resto, era “história natural”, uma vez que os vestígios de qualquer atividade cultural não eram “visíveis” ou identificáveis.
A descoberta dos geoglifos, assim como da chamada “terra preta de índio” (solos antrópicos milenares) mostraram a floresta como espaço de intensa atividade agrícola, manejo do solo e seleção artificial de espécies, conformando o que, ilusoriamente, se entendia como “mata virgem”.
Há 9 mil anos do presente, povos ocupavam a área e desenvolviam técnicas sofisticadas de manejo florestal. Os castanhais, por exemplo, foram erroneamente considerados ajuntamentos espontâneos; eles foram criados pelo homem que viveu na Amazônia nos séculos anteriores à ocupação ocidental, tendo sido encontrados castanhais enfileirados, entremeados com plantações de cacauí.
É no fio dessas descobertas que se entende o Acre, hoje, como um poderoso polo de difusão cultural. Os geoglifos lá encontrados (hoje em torno de 300), estão datados de 800 a.C. a 1.000 d.C. No seu território se formaram pelo menos 15 diferentes etnias, provavelmente descendentes dos primeiros ocupantes da área.
Há evidências de que há 8 mil anos se domesticou a mandioca por aquelas bandas. Duas subespécies selvagens dessa planta, uma delas a flabellifolia, que cresce como um cipó na floresta, mostram grande parentesco com a mandioca cultivada e tem sua ocorrência no sudoeste da Amazônia.
Também a pupunha teve seu trabalho de seleção artificial começado há cerca de 9 mil anos no Alto rio Purus, no Acre. Lá encontram-se exemplares silvestres com frutos de apenas 1 grama, sendo que a pupunha domesticada pelos índios atingem 70 gramas por fruto. Portanto, é daquele “fim de mundo” que começou boa parte do Brasil indígena tal e qual apreciamos hoje, concluem os arqueobotânicos. Assim, muita coisa que parece “natural” é, antes de mais nada, produto cultural.
Em outras partes da floresta Amazônica também foram encontrados vestígios de ocupação milenar tão importantes como os geoglifos. Havia cidades cercadas, ligadas por largas estradas, ao longo das quais havia hortas e cultivos de pequi, de mandioca, e tanques de criação de tartarugas. Talvez as tartarugas possam ser consideradas, numa analogia moderna, os “frangos” dos povos indígenas.
Poderíamos achar que tudo isso, recordado hoje, é, para a culinária, um exagero frente à expansão universal dos modos de vida ocidentais. Mas é a pobreza que nos ata ao passado e preside as transações presentes. A mandioca resiste ao trigo, é certo, mas aparece no prato, em excesso de carboidrados, ao lado do arroz e do macarrão. Não há substituição, mas a adição do tempo novo ao antigo, em camadas, em desarmonia com o paladar que julgamos mais refinado.
A farinha de mandioca de Cruzeiro do Sul, considerada das melhores da Amazônia, é, em sua maioria, feita de “mandioca mansa”, ao contrário daquela que se encontra em Belém, por exemplo. Mas as duas mandiocas, parece, foram selecionadas a partir da mesma primitiva forma flabellifolia.
Há arqueólogos e arqueobotânicos que sustentam a hipótese de que a forma venenosa foi desenvolvida como maneira de pôr os cultivos a salvo dos animais predadores, quando o homem já havia desenvolvido a técnica de cozê-la, libertando o produto do veneno natural (cianeto) que havia sido fixado como qualidade desejável dos cultivares.
Na história moderna, é bem provável que os nordestinos, especialmente cearenses, que ocuparam o Acre para o cultivo da borracha - levando o Brasil a comprar o território da Bolívia - tenham ajudado a fixar a preferência pela macaxeira na elaboração da farinha. Aliás, não só a farinha, mas todo a dieta dela derivada, com vários bolos e biscoitos enriquecidos com coco, denunciam um paladar mais nordestino do que propriamente amazônico.
Naquela lonjura de “fim de mundo”, no isolado muito singular que pôde produzir as mandiocas modernas, até o feijão exibe exuberante variedade: são diferentes raças (há pessoas que contam 45 variedades), reivindicadas como identitárias e que se encontram por todo canto. Corgutuba vermelho e branco; peruano, vermelho e claro; mudubim, “normal” e roxinho; quarentão; manteiguinha (que me pareceram mais miniaturizados que o de Santarém), etc.
É quase obrigatório dizer que, em situações de isolamento, a assimilação é mais importante do que a dissolução do modo de vida tradicional. O território “recebe”, mais do que se integra no global. Vai digerindo lentamente o que lhe chega, criando algo que não existia.
Evidentemente tudo o que se diz aqui são conjecturas mas, afinal, a gastronomia está longe de ser uma ciência; e uma visão nova precisa se mover entre novos argumentos.
(conclui no próximo post)
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10/09/2011
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