31/07/2012

Argumentos contra a harmonização

A teoria da harmonização gastronomica nos diz que duas coisas juntas podem funcionar melhor do que uma só. Tirando o enfoque “essencialista” (dois produtos do mesmo terroir revelam a mesma essência, extraída do ambiente) e anti-geneticista (a genética, nesse caso, fica em suspensão), seria necessário uma grande cultura sobre as interações fisico-químicas dos elementos com o organismo para se poder afirmar algo útil.

A tendência da investigação gastronômica é, hoje, o oposto. Quero distingir, por exemplo, entre os sabores dos azeites provenientes de azeitonas de diferentes variedades (genética). Mas quero também identificar o que marca cafés produzidos em diferentes latitudes. Em outras palavras, preciso de uma estratégia para penetrar as singularidades num momento em que as mercadorias alimentares procuram seus nichos de consumidores justamente apoiadas nessas diferenças sensíveis.

A harmonização é o percurso contrário. Um chocolate deve partir de um cacau de origem conhecida. Se adiciono baunilha ou o que for, como um adjetivo, escondo a percepção do substantivo. Quando busco um vinho que harmonize com o chocolate - o porto, dirão pelo hábito - recalco ainda mais a percepção do cacau. Sem o açúcar, por exemplo, cacau, café e chá irão se revelar como vieram ao mundo, antes de penetrarem no Ocidente que os transformou em outros sabores.

A harmonização de um vinho com uma carne, esconderá necessariamente o vinho - sufocando caracteres seus. Os vinhos ácidos com queijo de cabra, que combate a acidez excessiva do vinho, é um bom exemplo de “harmonização” conforme tento expressar.

Se tenho um excelente vinho em mãos, o que ajudará melhor sua fruição do que uma simples fatia de pão que vou alternando gole a gole? Alguém poderá dizer: mas é isso a verdadeira harmonização! Ok, então por que complicam tanto?

11 comentários:

Bernardo disse...

Caro Carlos Alberto,

eu não posso negar o quanto a "situação harmonização" esteja se tornando chata - repetitiva, superficial ou excessivamente detalhada, conforme o caso.

No entanto, dispensar o conceito de harmonização com o argumento da qualidade individual de cada elemento me soa como dizer que ir ao cinema e sair pra jantar na mesma noite é desperdício da experiência de ver um grande filme ou comer num excelente restaurante.

O discurso é, no mínimo, simplório - mas me soa uma chacota embirrada de quem está cansado dos outros batendo na mesma tecla.

Preciso assumir que diminuí drasticamente minhas leituras do E-boca Livre por este exato motivo.

Como alguém com tamanha experiência e preparação intelectual desperdiça tanta energia, tempo e alcance de leitores fazendo birra?

O senhor deveria ser uma referência em termos de raciocínio, de reflexão no mundo gastronômico (e tenho certeza de que o é - ou AINDA é - para muitos) mas a cada texto que leio tenho a sensação de que está se tornando uma referência de amargura e chatice deliberada.

É pena que num Brasil tão carente de gente capaz de refletir e se expressar sobre suas reflexões os poucos preparados desperdicem tanto...

e-BocaLivre disse...

Caro Bernardo,
obrigado por escrever.
Imagino mesmo que a redundância leva ao que você chama de "chatice". A sua opção é promover outras leituras, talvez mais interessantes. Mas vamos ao tema da harmonização.
Acredito que ele surge, modernamente, com Curnonsky, e se referindo a uma relação entre território e sabores de vinhos e comidas correspondentes. É uma concepção mística, que cada um acolhe como bem entende. Poucos estudos sistemáticos sobre terroir mostram fundamentos para as associações.
Só queria, aqui, apontar a contradição entre genética e adaptacionismo, aliás muito atual nas polemicas entre biólogos, especialmente aqueles que andam explorando a epigenética. É claro que isso não tem nada a ver com esses rituais de harmonização - abusados, como você diz. Mas acho que é uma oportunidade para se pensar no que, de fato, determina as afinidades e oposições gustativas - visto que elas devem se originar em sensações objetivas e subjetivas.
Acho isso relevante para quantos estejam se formando sobre o assunto, visando um exercício profissional mais consciente. Depois da chamada "gastronomia molecular" não há como desprezar o plano das interações fisico-químicas na análise da alimentação. O tema da "harmonização" é apenas mais um que se presta a essas considerações.
Lamento que isso o aborreça, mas, fazer o que?
Mais uma vez, obrigado pelas considerações.
Abraços

Anônimo disse...

eu acho engraçado quando qualquer prato da culinaria mundial os jornais tentam achar alguma "harmonização", mesmo em lugares que não tem o menor costume de tomar vinho, outras bebidas, no jantar. eu acho mais interesse mesmo é a "harmonização" cultural, de quais vinhos tem em tal região e com os pratos tipicos. o que cria varias coisas interessantes, tipo regiões tipicas de vinho tinto, que comem bem mais peixes e frutos do mar na tradição, já contrariando diversos estigmas

e-BocaLivre disse...

Toda "harmonização" é cultural. Não existem afinidades eletivas que sejam "naturais". Veja o exemplo do malbec argentino: invariavelmente parece que nasceu para o churrasco.
Abraços

Bernardo disse...

Caro Carlos Alberto,

"Tergiversou, mas manteve a elegância" diria um amigo...

Ao menos, aprofundou um pouquinho o debate sobre a harmonização e tornou a leitura (e a conversa), agora sim, interessante.

Na falta de experiência, prática ou conhecimento sobre as interações físico-químicas, não cabe a análise organoléptica pura e simples? Porque exatamente é necessária "uma grande cultura sobre as interações fisico-químicas dos elementos com o organismo para se poder afirmar algo útil"?

Não é o tema em si o que me aborrece, é a ladainha do tom de reclamação constante somado ao discurso "academicizado" e, muitas vezes, vazio de conteúdo prático o que incomoda.

Por outro lado, hei de convir: promover leituras interessantes sobre o tema em português é, com o perdão do trocadilho, virtualmente impossível...

e-BocaLivre disse...

Bernanrdo,
sinto um preconceito injustificado contra a "academia". Por que? Acaso tens um balanço que lhe seja desfavorável nessa área? E para ficar no terreno que interessa, a Esalq, por exemplo, tem promovido estudos sensoriais bem interessantes sobre azeites. E acredito que os profissionais devam mesmo ter uma cultura acima da média, em vez de ficarem maquaqueando o que não resiste a uma crítica. Por exemplo, devem conhecer "Reflexiones sobre la Degustación: la necesaria estandarización de los Descriptores en el Análisis Sensorial de los vinos", de A. Razungles y P. Bidan, que se encontra na internet. Em português, há bons elementos para estudo no número especial de Scientific American Brasil, que tive a honra de publicar, com textos de Hervé This - e não somente dele - sobre "gastronomia molecular".
É claro que, como estratégia de marketing, tudo é válido. Mas não é esta a minha perspectiva de análise e acho que há gente séria, estudando gastronomia, que merece que facilitemos outros pontos de vista.
Abraços




Por A. Razungles y P. Bidan

Bernardo disse...

Carlos Alberto,
é a velha história da raposa e as uvas... de fato pessoalmente me sinto um tanto desprovido de peso pro balanço, mas é justo em função do envolvimento cada vez maior com a academia que me preocupo sempre em não embarcar no hermetismo e na desconexão com o mundo das pessoas "reais" - as que produzem, as que consomem, as que vivem o objeto de estudo mais do que a pura reflexão sobre ele.

Por outro lado, quando há generalização há preconceito - compreendo seu sentimento. "Injustificado"? Pode ser: há academia e academia e há também indivíduos dentro dela. Já infundado eu não diria.

Obrigado pelas referências. Tenho aqui - mas não li e vou tratar de aproveitar o puxão de orelha - o estudo de Razungles e Bidan. Já as Scientific American me lembro que foram à época ao mesmo tempo instigantes e desapontadoras, vou desencavá-las por aqui e dar uma relida.

Continuo sem opções virtuais de leitura em português. Se eu puder contribuir, recomendo as reflexões e estudos de Alex Hunt - em especial sobre degustação e o gosto, alguns deles disponíveis online.

e-BocaLivre disse...

Não esqueça, em português, o extraordinário livro de Émile Peynaud. E leia a Scientific American, que é uma publicação de divulgação, como algo que sugere temas e abre horizontes.
Quando à academia, considere que ela não tem apenas compromisso com o imediato e o prático; ela não está somente a serviço das necessidades do capital.
Abraços

Bernardo disse...

Com pressa, retifico a falta de clareza anterior - fruto de pressa também:

1. onde se lê "leitura em português" leia-se "leitura produzida originalmente em português".

2. Alex Hunt escreve em inglês, na World of Fine Wine e no site de Jancis Robinson. Infelizmente não há muito dele aberto ao público por aí.

Bernardo disse...

Espero que ainda seja tempo - texto de pouco relevo pra gastronomia e vinho, mas algum para o debate
sobre a academia e a produção de conteúdo:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/1147746-batalhas-verbais.shtml

e-BocaLivre disse...

Havia lido o texto, Bernardo. Obrigado.

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