03/07/2012

Que relação a gastronomia deve estabelecer com o Estado?

Nos últimos meses tive a oportunidade de participar de três eventos gastronomicos onde, pela primeira vez, colocou-se a questão das relações a serem estabelecidas entre os chefs de cozinha e o Estado.

No Festival Ver-o-peso da cozinha do Pará esteve uma delegação da Embratur. Por conta das repercussões da Virada Cultural de São Paulo - especialmente o caos no Minhocão - iniciou-se uma interlocução com a Prefeitura. Finalmente, no Paladar - Cozinha do Brasil houve uma rápida sessão de conversas com uma delegação da ANVISA.

Tudo isso representa, no meu modo de ver, um acordar do setor público para algo que a sociedade já percebeu: existe um desenvolvimento da culinária brasileira que pode ocupar uma função simbólica importante na sociedade; e o Estado quer, por sua parte, colher uma parcela desse prestígio, ainda que até agora não tenha contribuído em nada para que isso acontecesse.

Pelo contrário. O Estado é responsável por normas demasiado rígidas que impedem o livre desenvolvimento da culinária brasileira em situação de mercado. Dai, também, a esperança de um número pequeno de chefs de que dessa interlocução nasçam melhores condições institucionais de trabalho. Os chefs de cozinha, em geral neófitos em política, estão bastante esperançosos. Acreditam que a coisa “agora vai”. Mas, que coisa, e vai onde?

A Embratur, órgão responsável pela divulgação do Brasil no exterior, como “destino turístico”, sabe que, na quadra que se aproxima, onde eventos importantes como a Copa acontecerão, está totalmente desarmada para oferecer uma representação minimamente atraente da nossa gastronomia. Também, pudera - o Plano Nacional de Turismo, que expressa a visão do Estado sobre essa indústria, não se refere uma vez sequer à gastronomia ou à culinária. Então, qualquer coisa que conquiste na relação com chefs é já uma grande aquisição para o Estado. Depois do evento é bem provável que volte à postura anterior - a menos que o Ministério do Turismo avance na formulação de um novo Plano Nacional de Turismo, de vigência plurianual - coisa que já deveria ter acontecido.

A Prefeitura de São Paulo, que se surpreendeu com o potencial mobilizador da gastronomia, especialmente nos setores médios da sociedade, ainda não conseguiu deglutir internamente o que aconteceu: afinal, trata-se de um assunto afeto ao abastecimento da cidade ou à cultura? É bem provável que não consiga resolver isso tão logo, de forma que a vida real seguirá de costas para a municipalidade.

Isso é gravíssimo, pois o ganho mais importante que se poderia obter dessa “surpresa” da Prefeitura seria a discussão sobre a institucionalidade desses eventos espontâneos, o que a obrigaria a começar a rever as posturas que marginalizam, criminalizam e perseguem a “comida de rua”. A informalidade desse setor em São Paulo, quando comparada com outras metrópoles é escandalosa. Basta ver que, apesar de “sem licença” centenas de trailer espalhados pela cidade comercializam toda sorte de alimentos populares. E, como diz um arguto analista, “na informalidade, o que não se paga de imposto se paga de propina”.

No que tange à ANVISA, o organismo que não possui mais que 12 anos, já normatizou o suficiente para se tornar um óbice poderoso para o funcionamento normal da economia artesanal. O aspecto sanitário do país é lamentável: mais de 50% dos domicílios não possuem ligação às redes de esgoto e água encanada e, talvez por isso mesmo, a agencia escolhe legislar sobre miudezas - como o uso de tábuas de madeira na cozinha, proibição do leite cru, gema de ovo cru e assim por diante. Tudo em nome de uma “sanidade” para a qual o Estado dá as costas em se tratando das grandes massas da população.

Na conversa com a ANVISA ficou claro que, para desencadear um processo revisionista, o grande problema é a falta de integração intra-governamental, especialmente entre a agencia e o Ministério da Agricultura - cada um responsabilizando o outro pelas mazelas do setor de alimentação, embora reconheçam que a legislação é feita sempre pensando na grande indústria do setor. O que a cidadania pode fazer a respeito da organização interna dos governos? Muito pouco...

Por outro lado, é uma ilusão dos chefs de cozinha pensar que seus problemas específicos - os que ocorrem dentro dos estabelecimentos, por imposição das normas inadequadas - possam ser considerados prioritários do ponto de vista da democracia brasileira.

É forçoso reconhecer, então, que a democratização do setor de alimentação - especialmente garantindo melhores condições de trabalho para todos - não depende dos eventuais privilégios obtidos na relação com o Estado. Depende, sim, da capacidade das lideranças setoriais em promover a mobilização ampla não só daqueles que fazem “gastronomia”, mas dos trabalhadores culinários de todo tipo que, há décadas, enfrentam sozinhos a opressão do Estado.

Produtores artesanais de queijo, de doces em tachos de cobre, vendedores ambulantes de cozinha de rua - esse o contingente de aliados principais. O futuro pouco depende dos áulicos e da recepção que venham a conquistar nas repartições públicas, num claro processo de cooptação. Muitas Ongs, nós sabemos, sucumbiram a se tornarem dependentes do Estado, especialmente através do financiamento das suas atividades.

Por outro lado - e ele é igualmente importante - a “gastronomia” reivindica a condição e o reconhecimento de um estatuto igual às “artes”. As “artes” - como a pintura, a literatura ou a música - não dependem do Estado para se desenvolverem. Ao contrário, quando estabelecem um vínculo desse tipo, só se desconfiguram, perdendo a condição de promover esse estranhamento tão saudável quando se trata da crítica da cultura estabelecida.

É um momento difícil, delicado, mas que é preciso atravessar com fortalecimento da representatividade, estabelecendo vínculos sólidos e orgânicos com os setores marginais do artesanato alimentar, distantes da gastronomia e seu mundo reluzente. Sem isso, logo chegará o dia em que os chefs entusiastas perceberão, desanimados, que não passaram de massa de manobra dos movimentos do Estado no seu processo de aggiornamento.

2 comentários:

Feraprumar disse...

Carlos,
a proposta então seria um "fortalecimento da representatividade, estabelecendo vínculos sólidos e orgânicos com os setores marginais do artesanato alimentar"...
poderia ser mais específico? teria algum exemplo que fosse relevante/impactante na gastronomia brasileira?
obrigado

e-BocaLivre disse...

Não precisamos de exemplo. Precisamos caminhar com os próprios pés. Ter uma estratégia que independa do Estado. Mas, se quiser exemplos, basta ver a organização dos cozinheiros no Pais Basco; ou o Mistura no Peru. Como essas coisas acontecem, são possíveis? Certamente o Estado vai a reboque da sociedade viva, atuante - não ao contrário, como é mais usual na política brasileira. Enfim, os chefs, para entraram na cena pública, precisam aprender política, não acha? Para não ser massa de manobra...
Abraços

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