29/09/2012

Em defesa de Monteiro Lobato e Tia Anastácia - I


O caso se arrasta há dois anos. O Conselho Nacional de Educação emitiu parecer contrário à distribuição de “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, alegando conteúdo racista do livro. O MEC liberou a distribuição da obra acompanhada de uma “nota explicativa” discutindo a presença de “estereótipos raciais na literatura”. Mas o “Instituto de Advocacia Racial” (sic) achou pouco e impetrou mandado de segurança contra o MEC. Agora o caso vai ser julgado no Supremo e o ministro Fux, em nota, disse que se trata de “relevante conflito em torno de preceitos constitucionais, no caso, a liberdade de expressão e a vedação ao racismo”. 

O cartunista Ziraldo declarou à Folha: “O Lobato tinha algumas idéias racistas, mas isso não atinge a literatura infantil dele”, enquanto a Professora Noemi Jaffe mostrou o absurdo que é censurar, sob qualquer pretexto, obra ficcional. Em síntese: Lobato já esta condenado, seja qual for o resultado do julgamento no Supremo, pois o que se decidirá é se sua obra pode ou não chegar às crianças em idade escolar. Na obra, Tia Anastácia é chamada “macaca de carvão”. 

Mas antes de tudo é preciso distingir entre “racialistas” - os que estudam as raças, procurando compreende-las, mesmo que erroneamente - e “racistas” - aqueles que advogam medidas eugenistas, políticas públicas de supressão de diferenças raciais, segregação, etc. Os primeiros, amparados pelo direito de livre expressão, podem dizer as besteiras que quiserem sem, contudo, poderem advogar publicamente medidas odiosas. Uma coisa é usar uma metáfora qualquer para descrever alguém; outra, advogar sua segregação, como foram eliminados os negros de escolas públicas norte-americanas durante tanto tempo. Lobato era um racialista, como muitos intelectuais de sua geração.  Mas por essa via - pasme Dr. Fux - ele chegou à militancia anti-racista!

Uma coisa é o vocabulário que uma época dispõe para um autor se expressar; outra, as idéias que ele expressa através desse vocabulário. E o que está faltando - graças à pressão irracional desse Ong equivocada (Iara) na compreensão de Lobato - é compreender o papel civilizatório de Monteiro Lobato.

Quando Lobato escreveu sobre temas raciais, já era corrente o conhecimento da genética de Mendel - o que acabou pondo por terra os preconceitos do século XIX, especialmente as idéias eugenistas que se baseavam numa hierarquia natural das raças. Então, o que os intelectuais como Lobato buscavam era uma outra maneira de explicar as diferenças entre os tipos étnicos brasileiros, especialmente a “inferioridade” do negro.

Conhecedor das pesquisas nacionais sobre saúde que tomaram impulso com a experiência bem sucedida de Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, e que acabaram por mostrar um mundo rural que mais se assemelhava a um “imenso hospital”, Monteiro Lobato criou o seu Jeca Tatu, a personificação dramática desse abandono. Além disso, a Revista do Brasil, que ele fundou, mostrou ao país, através dos sucessivos escritos de vários sanitaristas que se reuniam sob sua direção, que a fome, a desnutrição e as endemias comiam por dentro o brasileiro. 

Contra essa situação se insurgirão alguns, como o médico Manoel Bomfim – em dupla com Olavo Bilac – além de Monteiro Lobato e outros, reclamando modalidades de intervenção do Estado de modo a garantir a integração, através dos sistemas de educação e saúde, dos cidadãos que permaneciam excluídos de outras formas de cidadania. E não são hoje os candidatos a prefeito a prometer atender a esse programa mínimo, de universalização da saúde e da educação? Lobato foi apenas pioneiro.

A Revista do Brasil buscava claramente uma mudança de paradigma nas relações raciais. Nesta publicação, num ensaio de 1921, Carlos de Lemos analisa “a nossa evolução” sob nova ótica. Para ele, “os novos exegetas da economia política” costumavam comparar-nos aos Estados Unidos, mostrando o nosso atraso e a necessidade de superá-lo nos aproximando da sua “maravilhosa organização econômica”. Essa visão - dizia - esquece que “a evolução econômica de um povo é, sobretudo, uma operação final de consolidação política”. Do ponto de vista público, acrescentava, era preciso considerar “o esforço de melhoria, de solidariedade aos que sofrem, característico das sociedades civilizadas [...] em face das imperiosas necessidades da seleção humana”. Ou seja, reivindicava que o Estado se empenhasse no dever de “melhorar a civilização” pelo apoio público aos que sofrem. Antes dessa época, alguns intelectuais advogavam, ao contrário, que o Estado promovesse a eugenia, isolando os negros.

De forma cândida, Carlos Lemos expressa a diretriz melhorista que vários artigos da Revista do Brasil sugerem como política higienista e educacional. O “melhorismo” surgirá na literatura como um ideal ao mesmo tempo sanitário e racialista, como “obrigações de fazer” do Estado em relação aos componentes étnicos do povo brasileiro, onde se confundem traços biológicos, históricos e culturais a determinar um tipo humano deficiente. 

Monteiro Lobato, também se manifestou nessa direção. Para ele, era necessário encarar a questão aparentemente paradoxal de que nas zonas tropicais desenvolvem-se os animais e os vegetais em suas “formas mais altas”, ao passo que é aí que se concentram os problemas da “degenerescência do homem” (Monteiro Lobato,  “Saneamento e higiene – as novas possibilidades das zonas cálidas”, São Paulo – Rio, Revista do Brasil, vol. VIII, maio-agosto de 1918). Ora, diz ele, sendo a vida “filha do calor”, o homem, “com civilizar-se, afastou-se da natureza. A conseqüência disso foi o enfraquecimento”. Por obra desse enfraquecimento – fruto, por exemplo, do uso do vestuário, enfraquecendo o organismo (o órgão que perde a função...) - a vida só pode prosperar em regiões temperadas ou frias, onde as atividades vitais são pouco intensas “graças à ação refreante do inverno. O mundo dos micro-organismos não alcança o colo, o parasitismo é quase nulo”. 

Uma vez transposto para os trópicos, a “baixa animalidade” dos homens civilizados os faz vítimas dos micro-organismos invasores. Em seguida, acrescenta:“A higiene é a defesa artificial que o civilizado criou em substituição da defesa natural que perdeu. Ela permite ao inglês na Índia uma vida prospera, exuberante de saúde, no meio de nativos derreados de lezeira (...). O nosso estado profundo de degenerescência física e decadência moral, provém exclusivamente disso: desaparelhamento de defesa higiênica (...).  Só agora se faz o diagnóstico seguro da doença, e surge uma orientação científica para a solução do problema da nossa nacionalidade, ameaçada de desbaratamento pelo acúmulo excessivo de males curáveis [...] o caminho está desimpeçado para a cruzada salvadora. Sanear o país deve ser a nossa obsessão de todos os momentos. É a grande fórmula do patriotismo”.

É inegável que este programa político indica que o Estado não só deve se opor à “seleção natural” que as doenças promoveriam ao agir livremente, como renunciar à “seleção artificial”, à eugenia.

Num outro artigo, denominado “Pequenos cuidados higiênicos”, Belisário Penna invoca o exemplo de Oswaldo Cruz e acrescenta que a raça, “que é uma mistura de raças, ainda não está definida”. Apresenta predicados de inteligência, de vigor físico e de capacidade de trabalho; “houve porém, em todos os tempos, grande descuido da educação e da instrução do povo, e da sua concentração em regiões acessíveis” e, realizada a abolição, foram os negros “abandonados e relegados a coisa abaixo dos animais, espalhando-se por toda parte, contraíram doenças de que se não tratavam, constituíram-se em focos delas, poluíram as terras e águas, infectaram mosquitos e barbeiros, e contaminaram toda a população, vingando-se assim inconscientemente dos brancos”. O abandono do negro liberto foi o caminho para as doenças, o alcoolismo e toda sorte de endemias. Assim, não é ele um fator de decadência, mas o abandono. Desta ótica, “nem a raça nem o clima influíram de qualquer modo para isso”, indicando que “um salto mortal e trinta anos apenas de imprevidência e de desgovernos da União, dos Estados e dos Municípios bastaram para prejudicar profundamente uma raça, que se ia constituindo auspiciosamente”.

Cuidado especial merece, ainda, o alcoolismo, que “contribui poderosamente para a decadência do povo, para a desmoralização da política e para a degeneração da raça”, concluindo: “Quando os ensinamentos da higiene se infiltrarem nos cérebros dos dirigentes e dirigidos, e a prática de pequenos cuidados higiênicos se generalizar, ninguém mais terá pretexto para malsinar a nossa raça e denegrir o nosso clima, e o Brasil caminhará então vertiginosamente para o seu glorioso destino”.

Ora, a diretriz do melhorismo será reivindicar que o Estado tome o “povo brasileiro” com base nas suas necessidades de higiene (saúde) e de educação. Mas não será senão após 1930 que se firmará o pensamento voltado para esta forma de relação estado-sociedade em nossa formação social, no que respeita às políticas públicas como  educação e a saúde, pioneiramente reivindicadas por Monteiro Lobato e seus companheiros dos anos 1920. 

Hoje, Dr. Fux, há muitos estudos históricos que condenam o “higienismo”. Mas não há como negar que ele é bem diverso do racismo e que Monteiro Lobato foi um pioneiro ao abraça-lo justamente contra o racismo. Monteiro Lobato é claramente um anti-racista, apesar de usar um vocabulário de sua época composto por palavras hoje consideradas politicamente incorretas. É preciso fazer justiça a Lobato, mostrando esse seu pioneirismo - não joga-lo na vala comum daqueles que execraram a presença do negro na formação da sociedade brasileira. O Sr. se apegue à história do pensamento para fazer justiça, não a um vocabulário manipulado de forma interesseira por uma Ong que propaga a ignorância dessa mesma história.

(Muito boa leitura sobre o assunto se encontra em Carta Capital)

1 comentários:

Martim disse...

Lembrando também que o alter ego de Monteiro nas histórias do Sítio era a Emília que, como ela mesma dizia, era filha de Tia Nastácia...

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