20/02/2013

Sobre cavalos e capitalistas inescrupulosos


Conforme procuramos analisar anteriormente a crise européia dos cavalos moídos para hambúrguer está longe de terminar, visto que a “caixa preta” apenas foi aberta. O que há no seu interior vamos sabendo aos poucos, mas já nos permite outras reflexões.

I

Em primeiro lugar, há muito mais empresas envolvidas do que à primeira vista. Parece se tratar de uma prática comum, e não de uma ação isolada de produtores inescrupulosos. Anteontem foi o dia de aparecerem a Nestlé (proprietária da Findus), o frigorífico JBS  e outros. Segundo o ministro da agricultura da Irlanda “o produto da Findus que continha 100% de carne de cavalo é uma mostra da complexidade do problema. Esses produtos eram feitos por uma empresa sueca que, na verdade, comprava produtos processados de uma empresa francesa em Luxemburgo, que comprava produtos por meio de um operador cipriota, que comprava na Holanda; e a Holanda, na verdade, comprava carne de cavalo da Romênia". Estes, então, são os verdadeiros elos do que se convenciona chamar “cadeia alimentar”, ligando as terras do conde Drácula à bolsa de mercadorias de Londres.

Na verdade, uma simples cadeia de commodities movida não por princípios alimentícios, sanitários, ou éticos, não pelo encadeamento de produtos e processos controlados, mas pelo chamado “custo de oportunidade”. Veio à luz, por exemplo, que o dono de um abatedouro foi contratado para retirar cavalos com lesões mortais de uma competição britânica, a Grand National. Cavalos inservíveis moídos. Mas cavalos aos quais, como se comprovou em parte, fora ministrada fenilbutazona, nociva à saúde humana. Abutres, a única palavras que me ocorre.

Em segundo lugar, aparece o motivo do envolvimento do JBS no assunto rumoroso. Como a carne brasileira vem sofrendo restrições - graças a caso comprovado de “vaca louca” (encefalopatia espongiforme) em nosso rebanho, em 2010 - o frigorífico entendeu que devia fazer uma operação triangular, comprando carne européia  como medida para evitar que eventuais mudanças legais ou barreiras ao comércio internacional prejudicassem o fornecimento aos seus clientes. Mais uma razão meramente econômica, de defesa de posição no mercado, leva o gigante brasileiro a comprar gato por lebre, cavalo por boi.

Em terceiro lugar, acusado de "complacência catastrófica", o governo britânico reage prometendo "a maior investigação já feita" sobre atividades criminosas na Europa, para descobrir como a carne de cavalo entrou no hambúrguer, na lasanha, etc, etc. Certamente um caso mais de auto-análise do que de “investigação”.

A JBS prometeu corrigir-se, e a Nestlé também. Essa  afirmou: "Queremos nos desculpar com os consumidores e assegurá-los que as ações que estão sendo tomadas para lidar com esse problema vão resultar em padrões mais elevados e melhor rastreabilidade." Os grandes players buscam tirar o cavalo da chuva, reconhecendo que sua “rastreabilidade” foi, até agora, pífia.

II
Por que o consumidor, abalado na sua confiança na indústria e nos governos, acreditaria que eles irão se emendar daqui em diante, como crianças pegas com a mão no pote de balas? Certamente o único caminho será re-acreditar a rastreabilidade, e isso depende de ser feita por novos atores, por organismos independentes, controlados e vigiados por representantes dos consumidores, distantes dos governos e das grandes corporações. 
Em segundo lugar, será preciso acoplar mecanismos de vigilância sanitária às próprias operações financeiras com commodities alimentares. Não é possível admitir que qualquer coisa de comer  passe, como uma simples troca de papéis e transferências bancárias, da Romênia para Chipre, para a Holanda, por Luxemburgo, para chegar na França sem ter sofrido algum tipo de inspeção que certifique seu valor comercial como alimento sadio. 
O que move essa cadeia de alimentação financeira é uma razão que jamais chegará de modo transparente às gôndolas dos supermercados. Afinal de contas, a dança dos cavalos só mostra que a lógica dos negócios em bancos e bolsas de valores - como a participação de ações do agribusiness em fundos de investimentos - se tornou autonoma de um modo que os consumidores reconhecem como perigosa.

III
Está visto que a financeirização da comida aporta riscos e incertezas à mesa, nos fazendo mal ao espírito e ao corpo. No entanto, a ofensiva dos grandes conglomerados agroalimentares não cessa. Ao contrário, escolhe um dos piores momentos de sua história para avançar via legislação: em 14 de fevereiro a Comissão Européia anunciou que os peixes de cativeiro poderão, novamente, ser alimentados com farinhas de porcos e aves,  já a partir de 1º de junho - segundo o Le Monde.
Por conta da epidemia da “vaca louca”, a França havia abolido esses componentes da ração animal em 1996, sendo que a União Européia consagrou o mesmo procedimento em 2001. A França se opõe à medida, agora anunciada, contra a qual já votara em meados de 2012. O Ministro da Ecologia, Delphine Batho, propõe a criação de um rótulo que estampe os dizeres “sem farinha animal”. Para ele, “não é da lógica da cadeia alimentar que se dê de comer  carne aos peixes. É a mesma lógica financeira absurda que se constata para a carne de cavalo”. Ele quer salvar a “cadeia pesqueira”.
Mais virulenta, a Confederação dos açougueiros, declarou: “É uma loucura a mais. Bruxelas cede às pressões da indústria agroalimentar. Essa mesma industria que não hesita para fraudar e aumentar seus lucros enquanto solapa a confiança dos consumidores”.
E basta dar uma busca na net para se descobrir  empresas brasileiras  que fabricam farinha de restos organicos - inclusive penas de frangos - para alimentação de peixes. O Chile é o nosso grande importador desse insumo para produção de salmões de cativeiro que, depois, comeremos em belos sushis em nossos restaurantes mais estimados.
IV
Diante desse quadro internacional, o Brasil não é uma ilha de sanidade animal cercado por interesses financeiros insanos por todos os lados. 
Leio estudos científicos que dizem; “as salsichas comercializadas na Região Metropolitana do Recife apresentam índices comprometedores de nitrato, principalmente as das indústrias que abastecem as feiras livres, fato agravado pelos altos níveis de nitrito também presente”; vejo a legislação que autoriza certos níveis de inclusão de vísceras e cérebros animais na mortadela, e tantas outras coisas condenadas pelas boas práticas alimentares, e me pergunto: onde está a Anvisa?
Por que a Anvisa insiste em nos fazer de idiotas, vendo chifre na cabeça de cavalo, criminalizando a produção artesanal - como do queijo de leite cru - quando os grandes conglomerados alimentares deitam e rolam, alheios às pesquisas sobre o que faz mal? 
Precisamos meditar sobre essa manobra sórdida que consiste em ver riscos na produção artesanal, quando o mundo todo vê que eles estão abrigados, como ovos de serpente, na grande industria.

4 comentários:

  1. Prezado Carlos Alberto Doria, há tempos não tenho acesso à um artigo tão bem estruturado sobre cadeias produtivas alimentares. Parabéns

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  2. Obrigado, Eduardo. E você pode ler ainda, na Folha de hoje, que Romênia e Bulgária, até 2007, eram usadas como plataformas para o Brasil introduzir carnes menos nobres na Europa. Depois, com o ingresso na UE, os impostos mudaram e esses países deixaram de ser competitivos em suas carnes processadas. Dai entraram os cavalos no moedor de carnes...

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  3. ironicamente carne (propriamente identificada, claro) de cavalo é bem cotada em circos círculos na europa, pra produção de embutidos inclusive (nos estados unidos se proíbe o consumo de cavalos, mas não concordo com isso, é tirar o direito de ir e vir).
    mas criadouros de peixe cada vez se mostram mais complicados, mesmo peixes que não precisam alimentação carnívora acabam entrando nisso de farinha de porco/ave

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  4. Anonimo, venho denunciando esse negócio de salmão do Chile há muito. Infelizmente a imprensa nacional faz ouvidos de mercador para assunto, embora sejamos grandes consumidores do produto. Coisa de "acordos internacionais"...

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