20/04/2013

ideais culinários de abrandamento: reflexão diante de um prato de “comidinha”


Na análise das tendências da gastronomia moderna pouca atenção é dada às texturas dos alimentos. A ênfase dominante recai sobre os sabores, aromas, contrastes de cores e, claro, arranjos nos pratos. No entanto, e em boa parte em decorrência de técnicas modernas de cocção, a textura “macia” é quase sempre elogiada, revelando uma estratégia nem sempre consciente de abrandamento da resistência natural dos materiais comestíveis. A indústria de alimentos, sempre atenta ao desejo do consumidor, apresenta a sua versão da maciez, através de um outro adjetivo: o “fofo”. Macio ou “fofo” são horizontes hoje explorados em vários fronts, embora pouco se medite sobre eles. 

Uma decorrencia disso é o uso abusivo dos diminutivos para se referir à comida. A categoria “comidinha” nunca circulou tanto nos meios de comunicação. O que era uma “comida”, desceu um degrau na escala de resistência, exigindo menos da deglutição. Ora, uma culinária com unhas, dentes e cuca é uma culinária forte, de personalidade; seja devotada às tendências da gastronomia moderna, seja enraizada nas tradições, como um simples arroz-feijão, batata e bife; ou um pastel de feira. Ela não admite diminutivos. É simplesmente ridículo convidar alguém para uma “feijoadinha”. Contudo, algo nos diz agora que é preciso abrandar a comida e seu léxico. 

O mundo dos mingaus é o primeiro domínio alimentar que se apresenta às crianças, depois da fase do aleitamento. Serve para introduzir outras coisas na alimentação de um mamífero ainda desdentado. Nem é quase comida, mas um universo diminutivo dela: papinhas e “comidinhas” correspondem ao modo de designa-lo. O liquidificador é o gadget-herói das mães; e que ele tenha evoluído na forma gourmet para o Thermomix dá o que pensar. Em ambos é como se se suprimissem as sensações proprioceptivas (eita palavrinha feia!) - aquele esforço físico que, abrandado no início da humanidade pela conquista dos alimentos cozidos, permitiu o crescimento da caixa craniana. Mas as crianças crescem com a comida. O caramelo, duro, quebradiço, é a prova dos dentes, como o infinito mastigar do chiclete. Conduzidos pelo açúcar, elas vão se afastando do mundo dos alimentos fofinhos, que ficam como memória.

A experiência adulta do algodão doce aproxima o indivíduo do prazer infantil. E que ele apareça sempre num parque de diversões já nos diz muito da sua natureza. Tudo nele evanesce, como se não se estabelecesse um compromisso duradouro com o açúcar - com o malévolo açúcar. Basta a umidade e o calor da boca para dar fim a ele. E, se é tão frágil, como pode nos fazer mal? Essa experiência - real e ideal - cria um valor alimentar que nos acompanha a vida toda: o fofo é superior ao sólido, e o crocante (crispy) serve para estabelecer contraste com o que verdadeiramente nos encanta. O mundo da “fofura” é também o dos bichinhos de pelúcia, dessa natureza representada como uma entidade acariciável. 

Mas o fofo, depois da primeira infância, tem seu sentido invertido. É ele que, portador de uma natureza sem arestas, nos acaricia. Tome-se como exemplo a atual coqueluche paulistana pelos “sorvetes cremosos italianos”. Eles trazem, não o sabor, mas a “fofura” como mensagem; embora possam ser mais interessantes como sabor do que como textura, esse aspecto é abstraído no seu elogio pela midia e pelos consumidores deslumbrados. As emulsões talvez sejam o grande legado da “culinária molecular”, cuja quintessência popular foram as espumas.

De fato, a busca do abrandamento da resistência dos materiais fundamenta uma solução que vai se difundindo, oposta aos modos tradicionais de comer: o império da “comidinha” - coisas fofinhas e “levinhas” - é o domínio das coisas que não exigem grandes compromissos de quem  cozinha nem de quem come. Nem é preciso frisar o ideal dietético que essas palavras encerram. Se uma coisa é aerada, o ar ocupa necessariamente o espaço do açúcar, das gorduras. Isso se opõe ao hard de um hambúrguer, por exemplo, que é o símbolo desgastado do fast food - a ponto de, numa respiração boca-a-boca, agora se transformar em iguaria (hambúrguer gourmet), resgatado do pântano da alimentação de funcionários de escritórios, posto fora do gesto mecânico do comer no dia-a-dia. 

Mesmo as carnes, fibrosas, consistentes como feitas para mastigar, passam pelo abrandamento. A velha técnica da cocção longa, a baixa temperatura, veio para primeiro plano. Bochechas de boi, costelinhas de porco - tudo passa por um processo de “desfibramento”, de desnaturação das proteinas de modo a se tornarem quase pastosas, moldáveis no palato. E tudo que é bem pouco estruturado quase não deixa memória. Não por acaso pode ser feito em “panelinhas”, como numa eterna casa de bonecas.

Nesse contexto, a “comidinha” parece ser justamente a comida que perdeu fibra, personalidade, força. Deslizou do terreno dos sabores marcantes, das texturas tradicionais e próprias de cada matéria-prima, para o total descompromisso. Pode até ser um divertimento, mas sempre será leve, banal, de modo a não pesar no estômago, no fazer, no bolso, no tempo. É o desincumbir -se do comer, não o entregar-se a ele com paixão. A própria fibra vegetal desintegrou-se, sendo consumida em separado como “complemento alimentar” em comprimidos que se engolem.

A comidinha não expressa o conforto; apenas o controle da angústia alimentar ao desvestir qualquer gesto culinário do esforço da entrega ao outro. Quem ama não faz uma comidinha para o outro, mas um prato qualquer inesquecível - até pela exigência do mastigar, esse exercício que exige para a clara incorporação da intenção alheia. 

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