07/08/2013

O Estadão e o queijo minas de leite cru



As pessoas para as quais o queijo minas se resume a uma iguaria estão exultantes. Duas ações coordenadas de governos permitirão, a partir desse mês, encontrar queijos “legais” nas prateleiras paulistanas. O que era uma discriminação odiosa parece superada. Este o tom da matéria publicada no Paladar (31 de julho de 2013).

No entanto, uma coisa precisa ficar clara como premissa de qualquer discussão: a produção de queijo artesanal de leite cru é um modo de vida, mais do que uma iguaria que se apresenta para o consumo nas mesas dos apreciadores. Da regularidade da produção e comercialização depende a cobertura de quase todas as despesas da família, visto não sobrar muito tempo para atividades complementares.

Mas a primeira ação de governo considerada louvável foi investir em dois entrepostos, instalados em Medeiros e em Rio Paranaíba, para maturar o queijo a ser comercializado fora do estado de Minas Gerais. A segunda, o “relaxamento” da própria legislação, uma vez que o governo federal, através do SIF, admite agora que suas funções sejam exercidas, por delegação, pelos organismos de vigilância sanitária estadual (no caso de Minas, o IMA), por adesão dos organismos estaduais ao Sisbi/Suasa - Serviço de Inspeção Estadual, regulamentado pela portaria nº 100 de 17 de março de 2010 do Ministério da Agricultura. A vigilância sanitária configura-se, agora, como um “sistema” de ramificações nacionais, e não mais como algo exclusivamente federal (se não de direito, na ação e no ônus correspondente).

Contudo não houve qualquer mudança de legislação no que se refere ao devido pelo produtor; houve, sim, um acomodamento novo entre instâncias burocráticas que dobravam entre si o trabalho baseado nas mesmas exigências. Pela portaria mineira do mês passado (portaria nº 1323, de 8 de julho de 2013), a adesão dos produtores ao IMA vale, automaticamente, como integração ao Sisbi, equivalente ao SIF, o que “possibilitará que os produtos mineiros das empresas aprovadas e inspecionadas pelo Instituto possam ser comercializados em  todo o Brasil”.  

Os estabelecimentos já registrados no IMA poderão aderir voluntariamente  ao SISBI, por já terem atendido aos seguintes pré-requisitos: possuir registro definitivo; ter a estrutura, equipamentos, produtos elaborados e a capacidade de processamento em conformidade com os projetos aprovados pelo IMA; possuir todos os rótulos aprovados sem ressalvas pelo IMA; ter implantado manuais de Boas Práticas de Fabricação (BPF) e Procedimentos Padrão de Higiene Operacional (PPHO) como programas de autocontrole, que devem possuir registros auditáveis. 

Não é fácil cumprir tudo isso, quando se mora nos confins de municípios pobres, onde até levar os filhos na escola demanda um esforço danado. O que dizer de cumprir normas burocráticas cujo sentido prático não parece evidente? Atualmente são  296 os estabelecimentos de produtos de origem animal registrados no IMA nas categorias leite e derivados, carne, pescado e derivados, ovos, mel e produtos apícolas. Desses, 240 são produtores de queijos, o que é quase nada diante dos 9.450 produtores do Estado. Além disso, somente 22 queijarias vão maturar seus queijos nos novos entrepostos inaugurados e Medeiros e Rio Paranaíba.



Três reflexões se impõem. Em primeiro lugar, como já dito, é preciso entender que “fazer queijos” é um modo de vida que sustenta um bom número de estabelecimentos de agricultura familiar, garantindo uma renda para a família que, em geral, mantêm um casal e a média de dois filhos. Sem a venda dos queijos não há unidade familiar: os filhos tendem a migrar; os pais a venderem o leite para os grandes laticínios.

Em segundo lugar, a estratégia dos entrepostos não é condição sine qua non para um bom produto. Por que maturar o queijo sob o olhar de uma autoridade sanitária é melhor do que fazê-lo na propriedade, obedecendo a critérios sanitários satisfatórios? Por fim, mas não menos importante, mesmo quem não tem registro no IMA produz queijos de excelente qualidade. O Sr. José Mário, um premiado produtor, manteve-se afastado do IMA até recentemente. Ele não via qualquer vantagem em se filiar e ter que pagar rótulos registrados, aumentando o custo do seu excelente queijo.

O fundamental de uma política pública reside no seu carater inclusivo: possibilitar que mais e mais produtores possam converter suas queijarias em estabelecimentos com padrões aceitáveis e reconhecidos de sanidade, e não investir exclusivamente em equipamentos elitizantes, como é o caso dos entrepostos. O poder público tem o desafio de mais de 9 mil queijarias. Nada menos do que isso. Não serão 22 queijarias privilegiadas a garantir um modo de vida tradicional em Minas Gerais. Elas servem para garantir um mercado restrito para o queijo minas artesanal em São Paulo, não para incluir o grosso dos produtores num mercado legal.

Afora as duas centenas de queijarias registradas no IMA, a grande maioria dos produtores continuará no mercado clandestino, transportando seus queijos na calada da noite, vendendo-os na periferia de São Paulo.  Embora Paladar possa saudar o novo arranjo administrativo como “fim do contrabando”, isto está longe de ocorrer.

4 comentários:

Anônimo disse...

Caro Sr. Doria, em minha opinião, o maior inimigo do queijo Minas é o seu próprio consumidor tradicional. Como explicar que, mesmo preferindo o Minas tradicional, de leite cru, esse mesmo consumidor não aceita pagar por ele o que pagaria, sem titubear, por um simples e insosso Minas Padrão.
Por isso que vemos os produtores recebendo menos pelo queijo do que receberiam pela venda do leite para um laticínio. Porém, com a publicidade recebida pelo Queijo Minas Artesanal nos últimos 10 anos, um novo grupo de consumidores (geralmente de maior poder aquisitivo) espera avidamente por encontrá-lo em suas padarias e mercados, aceitando pagar preços superiores aos laticínios industrializados. Por isso, acho que esse novo cenário beneficiará a sobrevivência desse bem de todos os brasileiros.
Em relação aos entrepostos, se bem administrados pelos próprios produtores, acho que serão uma boa opção para aqueles que, ao contrário do Sr. José Mário (afinal, assim como vinho, fazer um bom queijo é fácil, difícil é fazer um excelente), não conseguirem boas vendas individualmente. Junto com seus vizinhos, poderão alcançar volumes maiores e assim conquistar novos mercados.
Obs. Os municípios e produtores (mesmo que pequenos) do Alto Paranaíba e do Triângulo Mineiro estão longe de serem classificados como miseráveis, para os padrões do país.
Abraço.
Rafael.

e-BocaLivre disse...

Caro Rafael, falei em municípios pobres - como são a maioria dos municípios brasileiros, especialmente no segmento rural. Não usei o termo "miseráveis". E a dignidade dos padrões de vida onde predomina a agricultura familiar é muito devida à legislação, que favorece ou dificulta as atividades de transformação, como a feitura do queijo. Abraços

Débora disse...

Bom, eu ja vi produtores bem pobrezinhos, como os que moram perto da cachoeira Casca D'anta, em São Roque de Minas, que fazem parte de programas do governo como o bolsa escola e bolsa família, que moram onde o caminhão de leite nem passa, como essa família desse vídeo aqui: https://vimeo.com/65554411
E acrescento que foi um dos melhores queijos que eu comi na região,
Claro que tem produtores de queijo ricos também, mas pelo que tenho visto, a maioria é menos favorecida...

e-BocaLivre disse...

Debora,

se não estou enganado, foi o próprio Estadão que divulgou, há décadas, a expressão "menos favorecidos (pela sorte)" para designar pobres. Isso não existe, pois não se trata de favor nem de sorte. Há pobreza no Brasil, em todos os municípios (exceto alguns do Sul e alguns que produzem soja no Norte e Centro-Oeste). E pobreza não admite eufemismos.

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