05/09/2013

Performances internacionais e um pouco mais: Atala e Helena Rizzo


I

Finalmente saiu a lista dos 50 melhores restaurantes da América Latina e Paladar teve tempo de montar um panorama sobre os participantes do evento, coisa que Comida, que sai às 4ªs feiras, não pode fazer. Preferiu requentar o tema do happening acontecido no MAD, que comentaremos adiante.
Para nós, brasileiros, a lista consagra os óbvios. Quando vamos à vila Medeiros, ou a Belém do Pará, estamos certos de que vamos ao encontro daqueles que estão entre os melhores restaurantes do Brasil. Isso sem falar dos demais que estão no eixo Rio-São Paulo. Mas, como disse Rodrigo Oliveira, “não temos ar condicionado, carta de vinho, talheres de prata, e o nosso ticket médio é de US$ 20”, e mesmo assim ele está lá como o 16º no ranking do 50 Best da América Latina. Essa a vantagem desse premio sobre o sistema de classificação do Guia Michelin: a cozinha parece ser o foco exclusivo.
A disputa foi mesmo entre Alex Atala e Gaston Acurio. E como disse Atala,  lamentando o fato de a premiação não ter sido realizada no Brasil, “A gente teve a chance, mas ninguém fez nada”. Quem não fez nada? Provavelmente o governo, a Embratur, os patrocinadores. Alex fez tudo ao seu alcance. Mas Gaston conseguiu articular o palco da premiação e levou o evento para Lima - fazendo-o coincidir com a abertura do Mistura. Grande tino político, se vê.
O Brasil emplacou nove posições; a Argentina, quinze, ou seja, 30% da lista. Gosto do Oviedo, do Sucre, do Tomo Uno, do 1884 de Francis Mallmann, que estão na lista, mas não consigo ver, no conjunto, algo superior à culinária brasileira moderna. De qualquer modo, está claro que os protagonistas fortes para o futuro serão Brasil, Argentina, México e Peru. Esta bem assim. Como no futebol.
A indicação de Helena Rizzo como a Melhor Cozinheira da América Latina não surpreende. E ninguém deve se surpreender também porque escrevo “cozinheira” e não “chef” - pois ela é das poucas pessoas dessa dinastia que sabem que cozinhar é algo superior a chefiar. Cozinhar é reencantar o mundo, enquanto chefiar é apenas dar ordens.



E o que é ser “a melhor”? Me lembro de Carlos Drummond de Andrade que, quando chamado de maior poeta do Brasil, perguntava: “Como você sabe? Por acaso saiu com uma fita métrica, medindo os poetas?” O mundo competitivo é que é dado a comparações desse tipo; Drummond era apenas poeta, como Helena é apenas cozinheira. 

Há poesia na sua comida? Sim, muita. “Olhai os lírios do brejo, que não trabalham nem fiam e no entanto nem Salomão, em toda sua gloria, jamais teve o cheiro ou sabor de um deles”. São os versos que me vêem, assim distorcidos, quando como a sua sobremesa de lírio do brejo (que nem todo mundo gosta, ela sabe, mas que simplesmente adoro). 

Numa época na qual a gastronomia ficou chata, cheia de códigos, de regras, de procedimentos aparentemente “novos” visando a celebração técnica, a cozinha de Helena caminha num sentido contrário, de busca do reencantamento do mundo através da sensibilidade que rege o seu trabalho. Diretriz da qual ninguém deveria ter se afastado. 

Mas se foi por isso que os jurados lhe concederam o premio, é sinal de que há uma esperança. Afinal, o justo é que cada um tenha o seu lugar no mundo perfeitamente reconhecido. E o lugar de Helena é nos fazer mais felizes quando comemos no Mani. Isso merece destaque; seja aqui, no Peru ou em Londres. Mas acho que essa coisa de “mulher”, cozinheira”, não é apropriado. É sexista, e Helena Rizzo cozinha universalmente bem. 

A nota dissonante nessa festa limenha - à qual a imprensa não deu destaque - veio de Francis Mallmann, que renunciou à condição de jurado do premio e encaminhou uma carta à organização, na qual diz minha vida na cozinha não tem mais elos com esse ranking” e explica por que:

“ Vejam: eu cozinho há 40 anos. Como sabem, cozinha é um romance com ingredientes, espaço, serviço, timing e silêncio. Observo sentimentos contrários em tantos de meus colegas que estão tão preocupados com os prêmios que passam o ano fazendo lobby perante o eleitorado, pulando de conferência em conferência e, na minha opinião, desperdiçando tempo valioso e distanciando-se dos reais valores que fazem um restaurante.
Prêmios criaram um ambiente fictício e ultra competitivo para nossa cultura gastronômica. Inovação parece ser o principal valor. Embora não haja nada de errado com (a inovação), afastou-nos da valorização de um ofício em favor do que chamam de arte. Jovens chefs tentam atravessar pontes muito antes do que deveriam só para serem diferentes, famosos ou novos”.
Mallmann é uma das melhores cabeças culinárias. Seria muito bom se os cozinheiros refletissem sobre essas suas palavras.
II

Matéria da Folha intitulada “Críticas a Atala são hipocrisia, dizem chefs”  traz uma frase minha assim reproduzida: “existe uma crise de criatividade na gastronomia atual, “de órfãos do Ferran Adrià”. Essa crise a teria transformado em uma coisa “chata e desencantadora”. “Não há happening, performance, capaz de salva-la”. Frase descontextualizada, que me permite contextualizar.

O que eu disse à reporter é que entendo a gastronomia como reencantamento do mundo, o que se opõe ao desencantamento (que é conceito sociológico preciso, de origem weberiana, e expressa o fim da magia face ao avanço da racionalidade formal, da burocratização). Reencantamento à mesa, na experiência do indivíduo diante do que come, assemelha-se a provocar uma fissura no mundo desencantado em que vivemos. Essa diretriz se faz e desfaz, constantemente, ao longo do tempo. Há momentos de desencantamento e de reencantamento. O último ciclo histórico de encantamento se deve a Ferran Adrià. Ele esteve baseado em novos conceitos culinários e na magia da técnica e quando esta se disseminou, se vulgarizou e se estabilizou, acabou o ciclo. Esse o sentido da expressão “órfãos de Adrià”. Hoje se buscam novos conceitos, mas ainda não chegamos àqueles capazes de encantar e se difundir como um rastilho de pólvora.

Depois de Adrià, os encontros de chefs indicam uma tendência forte à espetacularização, ou à discussão de coisas que não são especificamente gastronômicas, como a sustentabilidade. É bom que se conscientizem, se posicionem. Mas muitos chefs, que mostravam pelo mundo como faziam suas criações, substituiram as aulas por videos bem elaborados, em linguagem moderna, sem sequer acenderem o fogo no palco. É nessa linha que vejo o MAD, “sem fogo, sem receita”: uma performance onde Atala usou a “teatralidade”, segundo explica. Mas a teatralização do Coliseu não me agrada, o que está longe de dar razão aos chatos das sociedades protetoras dos animais que querem tutelar a cozinha.

Pessoalmente acho que a morte está fora do campo da gastronomia, ao menos até que se prove que a forma da sua administração influencie os sabores. Como a agricultura, ela só interessa na medida em que esteja voltada para produzir mais sabor à mesa. A morte não é “um elemento de vida” , mas o seu contrário, e, por isso, precisa ser qualificada. Morte ao tirano, por exemplo. Não há a morte genérica, tipo “morte acontece”, senão como pura naturalidade. Gastronomia, ao contrário, é cultura, vida.

A sociedade moderna esconde a morte dos animais comestíveis. Os antigos matadouros ou abatedouros agora chamam “frigoríficos”. O sangue cede lugar ao rigor mortis. Some, de tabela, a galinha a cabidela. A espetacularização da morte de uma galinha mostra essa mudança. Mas, dai, o que decorre gastronomicamente? 

Não sou contra qualquer performance, happening. Nem a favor, porque acho que não pertence ao campo da gastronomia, que é o que me interessa. Não acho que ela reencante o mundo. Mas acho também que Atala é o cozinheiro que primeiro entendeu como inserir a nossa culinária no processo moderno de reencantamento do mundo, no ciclo virtuoso inaugurado por Adrià. Esse mérito, sozinho, o coloca no ápice de nossa história culinária moderna. Por isso mesmo, não pode ser incluído na legião dos “órfãos de Adrià”, que não terão lugar nessa nossa história. Além disso, Atala continua um criador.

5 comentários:

Joanna Martins disse...

Dória, é exatamente esse reencantamento que vemos em nossos clientes ao provar os pratos tradicionais paraenses, mesmo sem técnicas precisas ou modernas. São os ingredientes únicos e desconhecidos do grande publico que os encantam. Parabéns a Thiago e Felipe por continuarem o árduo trabalho de divulgação desse tesouro. Saudades de vc nessa terra de cheiros e sabores..

Ricardo Neves Gonzalez disse...

Dória, Mallmann está certo até certo ponto. Estes cozinheiros que receberam os prêmios não são estes jovens afoitos que se auto-intitulam chefs muito antes do banquete à mesa! Está cheio deles por aí! Eu, continuo trabalhando minha técnica, meus pães, minhas criações dentro de meu mundo e de meu universo. Hoje, sou privilegiado, pois o estudo, me deu a técnica para poder apurar um dom que Deus nos concedeu a todos, indistintamente. poder escolher e criar. E hoje, orgulho-me de minhas criações como Pão de Carambola, um delicioso Pão de Abóbora com passas, Pão de Caqui, Pão de Batata Baroa com salsa e até...imagine você um Acarajé de forno! sim, o Acarapão,assado no forno, feito com farinha de trigo, farinha de acaçá, farinha de camarão, manteiga de garrafa, azeite de dendê...como base para o vatapá!
trabalho em uma parceria com amigos em um mercadinho aqui em Itaipava. Tenho minha clientela que cuido e que cuida de mim! É isto! Somos privilegiados, localmente!
Hoje apenas lapido, aprimoro o que aprendi. Mallmann deve ter suas razões. Pelo menos desculpou-se e não foi ao evento como jurado, por convicção!

e-BocaLivre disse...

UM DIA EXPERIMENTAREI SEUS PÃES RICARDO.
ABRAÇOS E BOA SORTE!

Alexandra Forbes disse...

Oi Dória, queria saber pq vc diz que "a imprensa não deu destaque" à nota dissonante nessa festa limenha. N foi no meu blog q vc viu essa carta do Francis? Estranhei, apenas... Um beijo, Alexandra.

e-BocaLivre disse...

Alexandra, o que chamo de "a imprensa" na coluna Leitor de 5ª é exclusivamente Paladar e Comida. Não resenho blogs, mas vale a sua observação, pois devia ter dado o crédito à fonte. Obrigado. Bj.

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