02/11/2013

Entre Castanhos e castanhais


Passei uma semana em Belém e pude ir cinco vezes aos Remanso do Bosque e Remanso do Peixe. Come-se bem nos dois endereços, mas isso não parece ser o mais importante quando contemplamos as atividades dos Castanho na cena gastronômica. Para mim, a maior satisfação é ver como a cozinha e o negócio deles evoluiram pari passu desde a última vez que lá estive.

É tão raro no Brasil um restaurante que passe de pai para filhos que só esse detalhe faria desses dois restaurantes instituições únicas. Que haja um pai que acorde antes do sol raiar para comprar peixes já é uma coisa extraordinária. Agora, que haja dois filhos na cozinha tratando esses ingredientes da melhor maneira que sabem, é uma segunda extraordinariedade. Por fim, uma mãe que administre de tal sorte que pai, mãe e filhos toquem o negócio juntos, ano após ano, é situação quase inexistente. 

Graças a essa força coletiva, o restaurante destacou-se da casa com o tempo. Lembro de quando o estoque ainda se distribuía por vários freezer nos corredores da casa, atravancando a passagem como se tudo fosse uma coisa só, como se a casa fosse o continente e o restaurante o conteúdo. A crisálida e a borboleta. Hoje a casa, o bunker da família, é a expressão do triunfo econômico, toda revestida de azulejos, conforme a tradição brasileira que revela prosperidade; a construção mais portentosa da vila onde está localizada (Travessa Barão do Triunfo).




Voltemos à diferença: o núcleo duro do restaurante é formado por uma família, não por um “chef talentoso” como ocorre por toda parte onde se tem pretensão de gastronomia. Talento costuma ser tido como um “dom”, personalizado num mercado competitivo e individualista; parece ser coisa de nascença, não da dedicação. Já excelência, capricho, constância e perseverança é a força que a família constrói dia a dia, sem gestos grandiosos, graças à contribuição de cada um dos seus membros. Diante desses valores coletivos, o “talento” quase passa despercebido.  




Tanto é que quase não percebemos algumas idas e vindas de Felipe Castanho procurando seu lugar ao sol nos Remansos. Cozinheiro como o irmão; depois, com foco na pâtisserie; depois, fora da cozinha, na administração; agora, de volta à condição de cozinheiro plenipotenciário. Os Roca, afinal, não foram o exemplo... Mas talvez os Castanho sejam desse mesmo aço, ainda que não da mesma forja. A mesma espécie de força coletiva que poucos restaurantes no mundo podem exibir. E que estejam situados em Belém é outra condição extraordinária. 

Hoje, quando a “cozinha de ingredientes” triunfou, Belém tornou-se um dos pontos mais importantes da possibilidade de pratica-la próxima da naturalidade almejada pela maioria dos cozinheiros. Basta um giro pelo Ver-o-peso para se constatar que a maioria das frutas, dos peixes, ainda é devida à coleta, à pesca ou ao cultivo caboclo, anteriores à “comoditização” dos peixes e frutas que vêem, céleres, pelo horizonte. Afora o cupuaçú, o açaí, a pupunha, quase tudo é fruto silvestre e isso, sabemos, é o supremo valor hoje.




Dna Carmelita exibe a maior variedade de frutos amazônicos do Ver-o-peso. Seu negócio é justamente a variedade, não a quantidade. Nessa semana, tinha batatinhas ariá, e os Castanho as ofereciam no restaurante. Os Castanho são clientes dela, assim como dos produtores de chocolate na ilha do Combu, ou dos produtores de ostras de São Caetano de Odivelas. Belém é uma cidade relativamente pequena e, no mesmo ramo, quase todo mundo se conhece. 




Portanto é possível ver as pessoas se associando, tendo em vista a qualidade culinária. “O melhor do melhor” se torna uma ideologia a mover várias pessoas que, de outra forma, estariam simplesmente à caça do dinheiro no dia a dia. Mas para que essa cadeia se formasse era necessário um cimento: que os Castanho viessem à tona, com novos critérios e exigências que reportam aos valores da “cozinha de ingredientes”. Dada a qualidade insuperada dos restaurantes Remanso na cidade, a “cozinha de ingredientes” de Belém aponta com força e vigor para o mundo. Deixou de ser apenas regional sem nunca ter sido “nacional” e é, hoje, legitimamente internacional. 

O prêmio 50 Best, concedido de forma ainda tímida, mostra que os críticos não são bestas de ficarem para trás, de terem que, de repente, revestir a pouca atenção com aquelas categorias improváveis, tipo “chef revelação”. Ali, nos Remansos, não há “revelação” - como essa espécie de aparição de Nossa Senhora entre panelas - mas trabalho duro, atento, preciso tecnicamente; criativo. 




Sim, criativo porque agora possuem um laboratório no segundo andar do Remanso do Bosque e sempre que vejo um espaço assim, dedicado à pesquisa e experimentação, tenho certeza de que saltos de qualidade virão. É só esperar. Ainda mais num lugar onde a culinária tradicional é valorizada ao extremo (embora quase sempre pelas piores razões....), “travando a roda” de quem cozinha sem muita reflexão, sem a certeza de, através da experimentação, ter alcançado algo digno de ombrear os sabores das coisas estabelecidas. 

Belém - inclusive os Castanho - ainda pagam tributo à idéia de “modernidade culinária” mal digerida pelos brasileiros que ouviram o galo cantar não se sabe onde. Há o tiramisu de tacuri ou cupuaçu, sem mascarpone, o que pode ser uma rima, mas nunca uma solução; há o horrível mojito com soda limonada numa cidade que sequer conhece o club soda, e assim por diante...

Mas os irmãos Castanho, pelo que conquistaram de “universal” em suas formações fora de Belém, e pela reflexão crítica sobre isso, estão destinados a revirar as tradições, reinscrevendo maravilhas da natureza ou da seleção artificial milenar (como são muitos produtos amazônicos, como os castanhais!), na gastronomia que aponta para um futuro promissor. Quase sem querer, eles estão mais pertos do Noma do que do El Bulli...
Não precisam se dedicar às pirotecnias; não precisam “desenvolver fornecedores” do modo sofrido como fazem seus colegas do sudeste mas, sim, no modo da cumplicidade alegre que há na face de Dna Carmelita quando fala dos Castanho.  Cumplicidade de ambos com a exuberância natural que Belém dispõe para todos. Mas ingrediente, mais do que naturalidade pura, é seleção. Seleção que exige critérios. Critérios que os Castanho têm.

Comi o menu degustação do Remanso do Bosque (junto com o jornalista português Miguel Pires) com encanto. Acho que há coisas a melhorar, como uma ostra que pode ser mais saborosa; uma maniçoba inconvincente; um chocolate “rústico” que também pede mais trabalho e sofisticação.  Porém nada disso impacta negativamente, pois ao sentar para comer têm-se a sensação de se estar numa empreitada experimental, num laboratório que navega pelo Guamá, de onde o tempo saca e sacará coisas inesquecíveis. Os Castanho, visivelmente, já navegam bem pelos peixes, pelos derivados da mandioca, pelas sobremesas. 

Mas, de imediato, nada disso importa tanto quanto a declaração de uns amigos, um deles estrangeiro, que me ajudaram a comer uma banda de um enorme tambaqui na brasa: “Nunca comemos na vida um peixe melhor!”

Afinal, qual o papel do cozinheiro senão encaminhar as maravilhas da natureza para o suas melhores formas de existência diante de paladares humanos? Senão administrar a felicidade aqui e agora promovendo esse encontro entre uma natureza excepcional e uma transformação sensível a essas qualidades únicas? Muita gente que prega o "respeito aos ingredientes" sequer se dá conta de que, quando eles chegam à cozinha, já foram estuprados na longa cadeia de fornecimento.

Certa vez ouvi de Adrià que o futuro da gastronomia esta na Amazônia, assim como na China, mas dependendo de conseguirmos transformar seus produtos em mercadorias produzidas regularmente. A cozinha dos Castanho, hoje, me faz duvidar disso. A reprodução seriada do pirarucu, do tambaqui, do bacuri não parecem ser o caminho. A maior proximidade com aquela natureza ímpar é mais compensadora.


Os Castanho são esses guias da natureza numa época em que as técnicas sozinhas enfastiaram. Até a estética dos seus pratos mostra isso mais e mais. Sorte deles, sorte nossa, sorte de Belém. 

Mas Belém é a civilização tropical que o Brasil teima em perder, em entregar à voragem do capitalismo mais que selvagem. Em certos trechos, seu trânsito já é pior do que em São Paulo. O mau gosto musical, o funk alto nos carros que passam, vão mostrando o fim dessa civilização que, um dia, sonhamos ser a nossa.





1 comentários:

Tanya Volpe disse...

Obrigada pelo lindo texto e as reflexões .

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