19/05/2014

PREFÁCIO VIRTUAL DE UM LIVRO IMPRESSO


Muita gente admira que se escreva um livro pelo simples fato de alguém escrever. O admirável é que essa forma de comunicação persista quando já quase não há mais, considerando-se a sua eficácia. Aliás, leitor, você está aqui na net em parte por essa razão não é mesmo? Senão estaria a ler um livro, essa coisa plasmada em papel. Portanto deve-se buscar a necessidade do livro em outro lugar, e ela é primeiramente subjetiva.

Um livro surge como uma infecção. Uma ideia que nasce, se instala e vai ocupando o cérebro, incomoda, espalha-se como uma mancha sobre ideias mais antigas que lá habitavam, inabilitando o autor para outros pensamentos e, portanto, uma idéia que deve ser purgada regularmente, através da escrita. No papel, é possível contemplar aquilo que se tirou do corpo e da alma, avaliar a extensão do mal, medir o esforço futuro para debelar por completo a inflamação.

Ao publicar A formação da culinária brasileira (2009) imaginei livrar-me de uma infecção desse tipo. Mas não. Ela voltou e, agora, publico Formação da culinária brasileira. Escritos sobre a cozinha inzoneira. Não é redundante, mas renitente. Penitente. Que forme forma.

Trata-se de uma infecção daquelas que, como fruto de uma virose, podem levar anos até se debelar. Essa a luta do autor contra o tempo, não os prazos que os editores teimam cumprir. Um livro está pronto só quando está pronto, quando o autor vê nele uma cura. Não é possível se livrar de um livro que ainda não se exauriu. Ele acaba voltando, como essa versão ampliada, reescrita, da Formação da culinária brasileira.

No caso de ensaios - e será diferente na ficção? - o livro cerebrado tem o poder extraordinário de empurrar o autor à busca de fontes, de informações que leu em algum lugar e simplesmente não encontra mais, de ameaças que se formam com o simples anúncio de surgimento de outros livros relacionados, de intuições que são sintomas de que o mal se alastra. O livro, que ainda não existe, é um vigoroso diálogo da escrita com os seus fantasmas.

Mas o texto, quando mais cresce, se torna um único território movediço e, aos poucos, a função de purga da escrita vai desaparecendo. Agora é toda a escrita, deslizando na tela do computador, que ocupa o papel da infecção, objetivada nas palavras em fluxo gelatinoso que continuam a  suscitar novos pensamentos, exigir sinônimos, novo posicionamento das vírgulas, novas divisões de parágrafos e, por que não, novos parágrafos, isto é, novas informações buscadas acolá etc, etc. A estabilização do texto é um tormento à parte. É necessário separa-lo do autor, cortar o laço que incomoda.

Conheço viventes que escrevem um só livro há mais de uma década (sem falar daqueles que escrevem teses acadêmicas por igual período). Talvez nunca se livrem dele, pois nem sempre a escrita é um antídoto eficaz ao livro que inflama o cérebro. O antídoto eficaz é a publicação.

O papel da publicação é, paradoxalmente, matar o livro que tortura o autor e dar vida ao livro do leitor. Mas não é uma transição fácil. O editor deve ser um sujeito com um domínio da língua superior ao autor; deve saber se travestir de leitor “comum”; deve encontrar todas as idiossincrasias do autor e trata-las como picuinhas, permitindo que este as veja como de fato são: picuinhas, e não sacadas geniais. Felizmente, agora, mereci a atenção de um editor assim, que me livrou do meu livro e produziu outro para os leitores, a partir do que pude fornecer. E é extraordinário quando esse editor presenteia o autor com um índice remissivo, permitindo-lhe ver quais os vírus que estiveram mais presentes naquela inflamação que acabou.

Acabou porque o livro impresso é imutável. Não pertence mais ao autor. Nada dele lhe diz respeito, visto que é irreversível nas suas causas e efeitos. Só a onipotência faria sua preocupação com o livro impresso ser maior do que a satisfação de tê-lo definitivamente matado dentro de si. A sua vida independente corre por conta própria. Pode, é claro, infectar outros cérebros, mas não se pode atribuir esse poder ao autor sem negar ao livro uma materialidade só sua.

Ao autor só resta desejar que não seja o livro a causa de novo tormento alheio. E que, se inevitável for, que se instala no cérebro de historiadores, sempre preocupados com a veracidade do afirmado quase levianamente por quem não o é. E desejar, para si próprio, a volta serena à condição arcaica de leitor solitário.



1 comentários:

Ricardo Neves Gonzalez disse...

Parabéns caro Dória. É realmente um dilema esta contaminação que sofremos ao prepararmos todo um livro e estarmos sempre inquietos relutantes ao entregar a obra nas mãos do editor. Eu estou com meu livro quase pronto.750 páginas, mais de 150 receitas, muita técnica e toda minha história com pães narrada de modo apaixonante. E que tarefa difícil, escolher a editora! É meu primeiro livro, estou meio perdido. Estou escrevendo mais três livros menores com 150 páginas que pretendo lançar virtualmente na loja de Jeff Bezzos. Estes três serão mais rápidos e creio que sentirei-me mais seguro, pela possibilidade de modificar os textos a qualquer momento. Mas o meu grande xodó é mesmo o de papel sobre o qual me debruço há quase um ano, sem coragem de terminar e sem coragem de entregar a uma editora, pois como você mesmo diz, o desapego é difícil e deve ser cercado de cuidados para que morra o livro e fique a obra para o mercado editorial e consumidor. Parabéns pela coragem e perseverança com seus textos que ADORO!!!

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