23/07/2014

Achegas à culinária negra da Bahia

Nina Horta (23/7/2014)  levanta a questão histórica da comida negra na Bahia, comercializada nas ruas. Ela me atribui escarafunchar assuntos que, depois, “leva um ano pesquisando só para se divertir”. O que me deixa feliz, pois se Formação da culinária brasileira (Editora Três Estrelas, 2014) pode ter alguma utilidade é ao ajudar a sacudir a árvore das certezas, espalhando dúvida pelo solo da pesquisa histórica.

A sociologia da culinária brasileira, começando por Gilberto Freyre, talvez tenha dado muita ênfase ao negro escravo, na lavoura ou nas cozinhas domésticas, sem dar a devida atenção para a comida de rua. Focar essa atividade, porém, é deixar um pouco de lado aquela ideia tão cara de que a influência negra na cozinha brasileira se fez pela adoção de ingredientes nativos ou africanos segundo técnicas de preparo européias, o que teria se processado especialmente na casa grande - cadinho da mestiçagem. Essa idéia de miscigenação é que, parece, está em causa quando se observa a cozinha de rua, especialmente de Salvador do século XVIII, sendo necessário atentar para outras formas suas.

Já reproduzi aqui trecho de uma carta de Luis dos Santos Vilhena sobre a comida de rua. É um documento de alto valor exatamente por ser “raro”. Ainda que o relato de Vilhena esteja eivado de preconceitos, esta sua carta levanta temas interessantes para o pesquisador. Por exemplo, que os negros vendiam pratos prontos “feitos de farinha de mandioca, arroz, milho”, como lembra Nina Horta na sua crônica.

Vilhena foi bem analisado pelo antropólogo-historiador Jeferson Bacelar, num texto intitulado “A Comida dos Baianos no Sabor Amargo de Vilhena”, que em algum momento deve vir a publico. Bacelar mostra como, em meados do século XVIII a Bahia já sofria uma inflexão importante, pois os cativos nascidos no Brasil já eram maioria, num processo de crioulização marcado pela maior adoção de costumes locais e, consequentemente, um progressivo afastamento dos padrões culturais das várias etnias africanas transplantadas. Afastavam-se especialmente dos padrões tribais praticados pelos iorubanos, os gbe-falantes, os haussás e outros povos da região da chamada Costa da Mina (Gana, Togo, Benin e Nigéria).

Se pensarmos que a comida de rua de Salvador de começo do XIX expressa esse processo, podemos nos perguntar: o que esses “crioulizados” comiam? Além das frutas, o consumo de amidos nos dá uma boa ideia da diversidade de soluções de vida, e Vilhena, analisando o celeiro público, informa que a farinha de mandioca vinha em primeiro lugar, seguida pelo milho (em quantidade 10 vezes menor) e pelo arroz (metade da produção do milho), representando o feijão 70% do arroz estocado.

Dentre as várias “introduções” do arroz no Brasil, certamente uma se deve aos negros islamizados da Bahia. Na Arte culinária na Bahia, de Manoel Querino, essa presença do arroz na cozinha de negros é notória.

Penso que uma grande “contribuição” dos negros à culinária brasileira é justamente esse trânsito por vários amidos. Enquanto os brancos tinham certa aversão ao milho, comida de animais e bugres, preferindo o trigo ou seu substituto (a farinha carimã) os negros o adotavam. E adotavam desde a África os ingredientes indígenas. O pequeno reino de Uidá (então em Daomé, hoje Benin) já apresentava, na metade do século XIX, uma importante agricultura baseada em produtos americanos, como o milho e a mandioca (Karl Polanyi, Dahomey and the slave trade, 1966).

Essas digressões servem apenas para mostrar o amplo terreno de pesquisa histórica, se quisermos compreender melhor como se deu, na prática, a “crioulização” da influência negra na nossa culinária. Talvez eles tenham sido mais “integradores” de coisas que se opunham ao funcionarem como marcadores sociais de grupos antagônicos (proprietários, escravos, índios), do que como “aportadores” de plantas africanas, por exemplo. Em outras palavras, o quiabo não apaga a complexidade desse processo que  se deu aqui e na África e que precisamos compreender.

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