07/09/2014

Os supernovos e o caminho verdadeiro (final)

 (parte I)

O artesão inicia diante do objeto bruto, que transformará em uma obra. O marceneiro tem uma idéia de cadeira antes de escolher e começar a manipular a madeira. O cozinheiro faz o mesmo, e o que pretende é chegar a uma construção física que, além disso, impressione o paladar, assim como o conforto impressiona quem se senta na cadeira. O  cozinheiro tem meios de produção próprios que não se resumem às ferramentas; lida com a fisiologia dos outros, onde o marceneiro lida com a ergonomia. A fisiologia do gosto é bem mais complexa.

Nina Horta recém resenhou na Folha (3/09/2014) o livro do chef Daniel Patterson, expondo sua teoria da “harmonização”: “Diz ele que toda sua técnica está em saber temperar (...): o sal aumenta a acidez, diminui o doce e o amargo. A acidez diminui o sal, o doce e o amargo. O amargo equilibra o doce. E o doce abranda o ácido e corta o amargo. Pronto, diz ele, é só isso que você precisa saber (...). Agora, todo esse tempero tem que combinar muuuuuuito com o ingrediente principal. É ai que entra o equilibrio”.

Não sei se é bem assim, pois há vários amargos que reagem diferentemente com outros sabores, e também porque Patterson não considera o sabor umami. O seu “temperar”, portanto, pode não coincidir com a percepção de para quem ele cozinha. E, nesse ponto, intervém o que a cultura nos apresenta como “equilíbrio”. Mais ou menos sal, mais ou menos pimenta ou cominho, etc. As possibilidades que ela encerra são múltiplas, mas não ilimitadas.

 Formamos nosso gosto numa faixa relativamente estreita e, com o tempo, incluímos mais opções no repertório, assim como aprendemos mais músicas, lemos mais livros, etc. Não raro, o mundo das elites urbanas e o mundo rural são inconciliáveis, como se fossem duas culturas estranhas entre si. É como se existisse, numa mesma sociedade, múltiplos gostos culturais. E, de fato, existe. Com qual trabalhar é uma opção extra-culinária.

Mas a dificuldade de se trabalhar com este ou aquele recorte não está só no plano da fisiologia do gosto. Como já dizia Atala há uns 10 anos, “o brasileiro não é conhecedor dos produtos da terra. Na Europa a transição entre a cozinha afetiva e a gastronomia é mais sequencial: o indivíduo come os mesmos alimentos quando ele é criança e quando cresce, porém aprende a apreciar de maneira diferente. No Brasil, a comida afetiva não tem nenhuma relação com a comida gastronômica, é um choque, falta uma etapa no processo. O brasileiro come arroz e feijão em casa e quando passa para a etapa gastronômica ele dá um salto para as comidas importadas e alimentos com os quais não tem intimidade, não conhece”.

Essa percepção do chef pioneiro justifica a estratégia comercial: “Brasileiro não gosta de cozinha brasileira e se eu não agregar valor aos pratos não há aceitação. Veja bem: se você der uma série de farinhas de mandioca para um baiano provar ele te dirá qual é a melhor. Dentre os clientes dos restaurantes de São Paulo, qual é capaz dessa proeza? Nenhum! Por isso preciso agregar valor reconhecível como tal - foie gras, trufas”. E, recentemente, uma cozinheira dos ditos “Jardins” me contou que seus clientes acham farinhas e pimentas coisas de pobre... Temos, então, que uma culinária com apelo comercial para as classes médias bem postas e classes altas é, também, e involuntariamente, classista.

A questão talvez se apresente de modo mais atenuado - e até inverso - nos locais onde a tradição fala mais alto: Belém (Remanso do Bosque) e Belo Horizonte (Trindade). Mas podemos concluir que o drama dos cozinheiros que investigam e querem explorar uma culinária tradicional brasileira, trazendo-a para o terreno da modernidade, consiste justamente em fazer uma ponte entre as classes de gosto (incluindo regiões etc). Não é fácil! No entanto, há uma demanda cultural - e até certo ponto comercial - por uma cozinha “brasileira” na qual a classe média urbana possa se reconhecer, ao menos nos termos em que se reconhece na japonesa, italiana, árabe etc: como uma “opção” da sua identidade multiculinária.



Para que esse passo seja possível, uma “nova cultura” é necessária para o publico e, também, para os cozinheiros. Analogamente, trata-se da nossa “mediterranização”. O substrato comum, a ligar internamente (historicamente, eco-sistemicamente) os ingredientes de um prato, nem sempre é consciente.

Tomemos aqui o exemplo das farinhas, que os clientes dos restaurantes paulistanos nem sabem diferenciar. Os cozinheiros acaso sabem? Recentemente, jantando em casa de Thiago Castanho, me surpreendeu sua frase: “nessa casa não entra arroz!”, o que me levou a prestar atenção ao uso variado que fez de farinhas de mandioca; alguns, surpreendentes para mim. Mas a familiaridade que tem com essas farinhas é excepcional, e ele se beneficia do fato de estar em Belém.

Quando chegam a São Paulo, algumas farinhas da Amazônia mudam até de nome - mostrando o estranhamento dos cozinheiros com elas: a de Uarini passou a ser batizada de “ovinha”. Ovinha uma ova!, dizem os tradicionalistas e aqueles que sabem a importância dos terroirs na nobilitação dos produtos. Do mesmo modo, por desconhecer as condições de produção, a maioria dos cozinheiros ignora que muitas farinhas da Amazônia, antes feitas com mandioca “brava”, são agora feitas com mandioca “mansa” e recebem corantes amarelos - assim como o tucupi. Não raro, não sabem distinguir sequer entre farinha d´água e farinha seca. O que dizer então da classificação por sabores?

Mesmo se ficarmos em São Paulo, o desconhecimento das farinha originadas por aqui é semelhante àquele das oriundas em outras regiões. Basta um exemplo: os paulistas fabricavam até algumas décadas uma farinha de mandioca bem torrada que era moída fina. Essa farinha praticamente desapareceu. Mas paçoca doce de amendoim, feita com farinha branca, não tem a mesma qualidade.

E as farinhas de milho? Desconhecem os cozinheiros a variedade delas. No máximo prestam atenção agora - graças à Retratos do Gosto - àquela de Lindóia, produzida pela família Bragatto. Como é típico das fecularias atuar em mercados locais, produzindo pouco por mês, o desconhecimento é enorme! Sem se colocar o pé na estrada, palmilhar o terreno, não se sai dessa ignorância.

Há, também, os entraves que se criam dentro do próprio restaurante. Tome-se o caso do cuscuz. Muitos chefes de cozinha preferem, para fazê-lo, a sêmola de trigo utilizada no cuscuz marroquino. É bem mais fácil, comparada à dificuldade técnica de se trabalhar com a farinha de milho para se fazer o cuscuz ao vapor (técnica tradicional). O cuscuz “de panela”, de farinha de milho, fica uma gororoba... 

O que dizer da polenta? Muitos chefes anunciam, orgulhosos, que fazem polenta com fubá italiano! Mesmo hoje, a Itália às vezes importa milho do Brasil para fazer o seu fubá! “Tucanaram o nosso milho”, poderia dizer alguém mais politizado.

Se formos para o capítulo da patisserie e panificação, quantas são as receitas feitas com farinha carimã? Muito poucas! Talvez os primeiros portugueses fizessem melhor uso dela do que os cozinheiros modernos.

Enfim, um universo a pesquisar, a descobrir, se dispõe para os cozinheiros e esse trabalho consiste inicialmente em (re)inscrever o produto no seu contexto de produção. Mas não podem esquecer, como disse Adrià na mesma entrevista que já citei, que “a cozinha é um tema muito complexo, onde participam todos os sentidos. Uma manga picada miúda não é o mesmo que um suco de manga. Podemos ficar dez anos fazendo estudos sobre a manga”. O raciocínio de fôlego curto, com objetivo meramente comercial, não nos leva longe...

Sim, e ainda seria preciso enfrentar o (des)gosto dos clientes. Daí a preguiça, que sempre prospera diante dos obstáculos aos nossos desejos. Daí a necessidade de se desenvolver projetos de pesquisa coletivos, onde o tempo e o empenho possam ser distribuídos entre os interessados, sem que se exija heroísmo de alguém.

Pratos são como frases verbais ou musicais, unem os “gustemas” como se fossem fonemas ou notas. Notas musicais ou palavras reunidas, sem a mediação de um léxico e uma gramática, nada comunicam além do “delírio” de quem as formula. Podem ser sons momentaneamente agradáveis, mas raramente se fixam na cultura comum. Para serem inteligíveis, precisam se inscrever numa estrutura partilhada entre quem as profere e quem as recebe. O mesmo ocorre com os gustemas. A rigor, podemos unir coisas saborosas segundo uma lógica em tudo pessoal. É um delírio supor que podemos comunicar a alguém nossas sensações todas dessa maneira. Só no terreno comum podemos estabelecer, com eficácia, diferenças perceptíveis e duradouras.

Adrià, quando contrapunha “mar e montanha” (o seu caviar com tutano) pretendia pôr em contato, de maneira ousada, dois conjuntos culinários bem configurados na sua Espanha. Uma oposição cujo sentido, entre nós, é bem duvidosa. Não é à toa que os cozinheiros modernos necessitam tanto recorrer à descrição minuciosa dos pratos, especificando todos os ingredientes e processos culinários. Sem esse recurso as coisas não se ligam, a percepção da intenção do criador não se revela.

E não é por outra razão que os gourmets se esforçam em registrar, por escrito ou em fotos, o que comeram. Sem isso são incapazes de descrever uma sequência de seis a doze pratos (na cultura gourmet nada é mais importante do que o relatar a posteriori!). Longe vai o tempo em que palavras como moqueca, cuscuz, feijoada, macarronada, eram suficientemente partilhadas a ponto de dispensar o esforço descritivo. O que está em questão é a identidade do que se come. A “mediterranização” foi a garantia de que todas os delírios criativos estavam, afinal, ancorados num porto seguro. É o que nos falta na trajetória da modernização culinária no Brasil.

1 comentários:

Giuliano Bittencourt disse...

Olá Carlos,
Fiquei muito encantado com o seus dois texto e como você conseguiu sintetizar a nova geração de chefs brasileiros que estão valorizando a culinária brasileira e trazendo ingredientes da terra.
Fiquei bastante curioso em testar algumas técnicas e gostaria de indicações de livros para começar a me aprofundar nas técnicas modernas. Você pode me indicar algum?
Obrigado

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