24/11/2014

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Contra o Cinema Nacional

(Este artigo foi publicando no n. 96 da Revista Cult, outubro de 2005)

“...o perigo das legislações improvisadas
em benefício das produtoras nacionais necessitadas...”
Glauber Rocha


Carlos Alberto Dória
Acalentado pelo estado brasileiro, o sonho antigo de um cinema vigoroso chega ao século XXI como um pesadelo: destroçado, raquítico, vendo nascer cinemas mais recentes, como o iraniano.
É verdade que, em todo o mundo, a construção da hegemonia cultural nos séculos XIX e XX foi mais complexa do que imaginada; foram grandes os percalços da indústria cultural e a ação do Estado não chegou a ser decisiva3. Mas para compreender o malogro da estratégia adotada pelos brasileiros é preciso afastar a tentação de tomar o nosso cinema pela sua filmografia ou pela especificidade dos problemas dos seus vários gêneros. Estes caminhos deixariam de lado o essencial, que é o forte sistema protecionista em que se apóia e que recomenda analisar o cinema como um contrato entre os realizadores e o Estado e as suas transformações no tempo, mais do que a sua presença no mercado em cada momento.
Em boa parte da sua trajetória o cinema respondeu às necessidades de representar uma sociedade que se industrializava e precisava de uma identidade distante da sociedade rural que ficava para trás. Já hoje ele enfrenta uma cultura globalizada com base num ethos de consumo pós-industrial, aninhada nos shopping centers onde se concentra a exibição cinematográfica. Como veremos, ele dificilmente triunfará nesse terreno, pois não se musculou ou adquiriu forças no passado e, agora, corre o risco de assumir a forma extremada de alienação à sombra do Estado.
Até o advento da Lei do Audiovisual, a proteção estatal teve um sentido cultural claro. Por exemplo, o primeiro favorecimento do cinema brasileiro, em 1933, deu-se ligado ao processo educacional, quando Vargas criou uma Divisão de Cinema Educativo. Em seguida, a condição protegida se estende para o mercado, ditando-se que os filmes estrangeiros de mais de mil metros só poderiam ser exibidos acompanhados de filmes nacionais com pelo menos cem metros.
Essas e outras normas protecionistas facilitaram o surgimento dos estúdios, segundo um modelo que integrava a produção, a distribuição e exibição - como no caso da Atlântida, que teve como sócio Luis Severiano Ribeiro, dono de um dos maiores circuitos exibidores5. Mas o protecionismo se mostrou insuficiente para sustentar o cinema nacional quando entrou em cena a grande produção norte americana e, em 1954, a Motion Pictures Association of America deslocou Harry Stone para o Brasil, onde ficou até 1994 com o propósito de fazer o lobby das empresas exibidoras.
A falência dos estúdios nacionais encerra esta primeira fase. Na seguinte, nos anos 60, surgiu um novo tipo de cinema, de feição autoral, que desfrutou de modalidades novas de financiamento a particulares, aprofundando a perspectiva prenunciada por Rio 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos. Este “cinema novo”, ainda que com baixa penetração de mercado, era portador de uma forte mensagem ideológica, uma clara inovação estética e um modelo negocial de cunho artesanal, traços facilmente reconhecíveis em Glauber Rocha. Foi esse cinema que gerou reconhecimento internacional, no mesmo sentido em que eram reconhecidos os cinemas italiano e francês de então e Glauber - para quem o cinema comercial era a tradição e o  autoral “a revolução” - instaurou uma dualidade duradoura no cinema brasileiro.
Com o golpe militar cerceia-se o caminho glauberiano,  enquanto o “cinemão” ganha a dianteira, beneficiando-se do “capitalismo de estado” que aprofunda a proteção através da criação, em 1969, da Embrafilme.
O objetivo da empresa mista era exercer as atividades industriais e comerciais relacionadas com o cinema, impondo, num só negócio, através de investimentos cruzados, a solidariedade entre produção, distribuição e exibição. Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), com 2,7 milhões de espectadores, foi a expressão máxima desse momento, no qual a cota de tela chegou a 112 dias/ano e as salas de exibição quadruplicaram em uma década. Como resultado, em 1982, o público do cinema nacional chegou a 31% do público total – fato mais expressivo se lembrarmos que é também dessa época o avanço da Tv em cores e a formação do monopólio da Rede Globo.
Com a redemocratização e a feição neoliberal que o Estado vai assumindo, entra em crise a justificativa ideológica para a imposição das razões de Estado ao mercado, exigindo a adaptação do contrato  com o cinema aos paradigmas do neoliberalismo, inclusive a recusa ao “dirigismo” que até então nem se cogitava.
Por conta do novo ambiente, o Estado empurra o cinema para o mercado e passa a perseguir o objetivo de constituir uma “indústria” que se sustente, mesmo necessitando de subsídios  transitórios7. Com a ênfase na indústria, a eleição de conteúdo fica ao sabor do mercado, com exceção do “cinema de arte” e documentários que continuam protegidos pelo Fundo Nacional de Cultura. Do ponto de vista formal, a lei segue dizendo que os cineastas devem produzir filmes que promovam a cultura nacional e a língua portuguesa e o Estado deve garantir a presença dessas obras nos vários segmentos do mercado8; mas “cinema nacional”, agora, é definido como todo filme produzido por empresas, diretores, roteiristas e técnicos nacionais. Essa situação nova (Lei do Audiovisual, Lei Rouanet e Ancine) impõe que os cineastas busquem o dinheiro no mercado, através de alianças com empresas que detém a “chave do cofre” da renúncia fiscal. 
Qual o sentido da intermediação imposta? As razões apontadas à época, como a transferência de custos de administração do processo para as empresas privadas, mostraram-se falsas. Na verdade, pela nova mecânica, o Estado criava o consumo cultural empresarial, coisa que não existia, e passava a considerar o marketing um segmento legítimo da indústria criativa, fundamental para a difusão cultural.  Além disso, estabelecia a premissa de que a competência cinematográfica se afirma empresarialmente, como resultado da capacidade dos realizadores de convencer os diretores financeiros das grandes empresas, em vez de buscar apenas o apreço do público. Este crivo “de mercado” foi imposto até mesmo para as estatais, que passaram a contracenar o jogo de mercado, aprofundando a inflexão da própria definição de “cultura nacional”.
Num primeiro momento, os realizadores saudaram este modo de financiamento que desatrelava o cinema da mecânica do orçamento público, mas logo se viu que, frente à  demanda de balcão que o governo incentiva,  concentravam-se os recursos no “cinemão” do eixo Rio-São Paulo, cortando o desenvolvimento dos cinemas regionais e do “cinema miúra”. A distorção do mercado ficou clara quando começou a se generalizar a oferta, por parte dos realizadores, de deságio sobre o valor de face das cotas de filmes, dando origem a um verdadeiro “caixa dois” do cinema que o governo logo tentou coibir.
Mais grave do que esta competição entre  “cinemas” foi, porém, a concentração da renúncia fiscal na produção, abandonando-se os demais elos da cadeia. Esta contradição, que já se manifestava nos anos cinqüenta e que a Embrafilme administrou com mão de ferro, passou a se desenvolver livremente9. O resultado foi notável: das mais de 3.000 salas de projeção do início dos anos 80, chegamos ao ano 2.000 com metade, sendo que a destruição  se deu especialmente no segmento de rua, concentrando-se as novas salas nos shopping centers, onde, em 2000, já estavam 588 das 1500 existentes.
Desde o início ficou claro que a “retomada” do cinema pós-Collor devia servir ao mercado e à nova cultura do consumo, mas o privilégio da produção demorou a revelar o seu real sentido enquanto prevaleciam as explicações tautológicas  da “cinematologia” vulgar: já que os filmes não dão lucro, a produção não existiria sem o apoio estatal. Ela não consegue compreender que, sob o neoliberalismo, o Estado deixa de ser o garantidor do mercado para intervir nele apenas para que a concorrência funcione, resguardando a moeda contra a inflação e controlando os monopólios que resultam da própria concorrência. A proliferação de agências normativas e reguladoras – inclusive a Ancine - corresponde a este figurino; mas embora a Ancine persiga a “auto-sustentabilidade” (sic) do cinema e a “a articulação dos vários elos da [sua] cadeia produtiva” ela não possui a prática que faça frente aos monopólios da distribuição e exibição, enfrentando a questão de maneira truncada já que esses elos da cadeia foram capazes de se reestruturar sozinhos.
E o que aconteceu com os próprios realizadores, em conseqüência das mudanças na relação do Estado com o cinema nacional? Como precisa convencer o empresário a investir no cinema, o realizador eficaz deixa de ser o “diretor” para se metamorfosear na pessoa jurídica que garante o sucesso do negócio-filme num ambiente concorrencial, sendo necessária nova habilidade para viabilizar os altos orçamentos e gerenciá-los14. Assim, faz parte da nova competência  se articular com os meios de distribuição e exibição e com o marketing que cimente essa aliança negocial. Quando isso não ocorre, mas o realizador foi capaz de caminhar até a captação financeira e a filmagem, o filme resultante é mera expressão das contradições de que o modelo negocial é portador.
Com o apoio concentrado na produção – e só no ano passado a Ancine aprovou 717 projetos de fomento - a competição entre realizadores produziu vários efeitos colaterais. Primeiramente estabeleceu uma “strugle for life” que marginalizou os menos articulados com o mundo empresarial e com o Estado; em segundo lugar, fez com que todos concordassem em lutar por uma só política de garantia de mais e mais recursos para o “cinema”; por fim, destruiu a “classe” dos cineastas, impedindo o amadurecimento de uma consciência comum sobre o interesse estratégico do cinema nacional, que não pode ser distinto do interesse público.
Nesse quadro complexo, a única ponta visível do iceberg é a acumulação monstruosa de “filmes na lata”, típica da crise capitalista de superprodução. O Estado tem comprado mais filmes do que o mercado consome, mostrando-se como mero reprodutor dos agentes econômicos que não conseguem realizar o seu produto na cadeia que vincula produção e consumo cultural. Além desses produtos esterilizados na lata, também é dramática a situação dos que vão “ao mercado”. Das 119 produtoras que nos últimos dez anos lançaram 207 longas-metragens em salas de projeção, apenas 22 (10%) conseguiram receitas de bilheterias correspondentes aos valores captados através de leis de incentivo, o que quer dizer que 90% dos filmes existentes dependeram exclusivamente do Estado. Além disso, dos 207 filmes, 78 (38%) foram vistos por menos de 100 mil pessoas, havendo casos extremos de produtoras que tiveram filmes exibidos para menos de 500 pessoas, atingindo, por expectador, o custo incentivado de R$ 49017 - o que quer dizer que a perversidade do modelo criou, sob qualquer ótica, um cinema socialmente inútil.
Por isso o cinema nacional aparece agora como o privilégio de uma espécie nova de funcionalismo público encarregado de constituir, para o próprio Estado, um estoque de filmes inviáveis nas atuais condições de realização, gerando um circuito viciado onde os envolvidos na produção “vivem do cinema” sem produzir cinema, levando ao paroxismo esta forma de alienação social. Na cinematologia dos tolos isso é equivalente a preservar o “nosso” cinema, como se ele fosse um conhecimento tácito que está “na cabeça” dos cineastas e que é preciso tornar explícito, colocando-o em latas de conserva como se fossem azeitonas. A irracionalidade do “filme na lata”, sob a ótica das políticas públicas, não encontra sustentação plausível.
Mas a dinâmica real do cinema nacional mostra outros caminhos. De um lado o cinema dito “cultural” que depende, para existir, de concursos promovidos por órgãos públicos; de outro, o “cinemão” que tem procurado se ajusta às transformações de mercado visando a televisão e a articulação de  novos modelos de negócio. Como exemplo, tem-se Luis Carlos Barreto, o rei do “cinemão”, que já se vincula a um projeto modernizador baseado na tecnologia Kinocast System (transmissão de filmes via satélite), junto com um grande grupo de investidores, para a instalação de 120 novas salas em cidades de médio porte.
O desaparecimento do custo de copiagem, a possibilidade de distribuição direta pela internet para as salas de exibição, a própria exibição em espaços não exclusivos para filmes, a ampliação do consumo doméstico, tudo embaralha as cartas e promove a reestruturação dos negócios. Assim, a fissura no contrato histórico entre os realizadores e o Estado cria uma nova oportunidade para a afirmação dos interesses públicos, o que implicará em cortar a dependência improdutiva do cinema e abrir novas frentes de investimento que incorporem ao mercado as camadas populares cuja fruição cultural não se aninha no mundo dos shopping-centers.
Por sua vez, ir “onde o povo está” e pôr fim à dependência improdutiva exige uma revolução de mentalidades pelo abandono da idéia de que a produção cinematográfica é igual apropriação estatal de conhecimento tácito. A nova mentalidade significará o reconhecimento de que produção é, imediatamente, consumo e vice-versa e que, portanto, o cinema nacional só se fará em estreito vínculo com os brasileiros excluídos dessa fruição cultural. Quando esta articulação se der, de novo será necessária a discussão qualitativa sobre o cinema incentivado, visto que a produção será destinada a um público que deixou de ser pensado como objetivo do esforço em prol do cinema nacional. Ao contrário, sob o neoliberalismo, Estado e realizadores se orientaram pela expectativa de consumo dos freqüentadores de shopping centers, estimados em 12 milhões de pessoas de classes A e B, enquanto os 65 milhões de consumidores de classe C e D só são cogitados como mercado para a Tv.

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