08/12/2014

TUDO QUE É HUMANO É CULTURA - II


A Lei Rouanet e a corrida do espermatozóide

Uma vez aprovado o projeto de lei nº 6562/2013 - e não há porque não o ser -  começará, para os entusiastas do movimento gastronomia é cultura, o que podemos comparar a uma autêntica corrida do espermatozóide, sendo este representado por cada projeto apresentado e sendo o “óvulo” os recursos do dinheiro público em renúncia fiscal.

Talvez o aspecto mais importante da Lei Rouanet seja a destituição do Estado do papel de orientador dos investimentos e ações em prol dos objetivos culturais. Ele não investirá diretamente em gastronomia e, por isso, continuará sem alocar recursos para esta finalidade em organismos científicos de pesquisa e fomento (CNPQ, Embrapa, Ministério do Meio Ambiente, Ministério do Desenvolvimento Agrário, etc) e oferecerá “ao mercado” a oportunidade de investir, visando favorecer o marketing das empresas que assim o desejarem e tiverem impostos a pagar.

De um modo liberal, entrega ao mercado - detentor nominal dos recursos públicos objeto de “renuncia fiscal” -  a decisão sobre onde investir em cultura. Acontece que essa experiência não tem sido satisfatória em relação aos projetos menores, nem àqueles originados fora do eixo Rio-São Paulo. A Lei Rouanet pode ser vista, portanto, como um expediente que concentra recursos, ao invés de distribui-los de modo equânime. É uma lei perversa cujos resultados podem ser vistos, com toda clareza, na indústria do cinema por exemplo.



 



 Na concepção geral do sistema de fomento, o governo distingue entre o Fundo Nacional de Cultura (FNC) e a Lei Rouanet. Diante do gigantismo da Lei Rouanet, o FNC era bastante inexpressivo. No entanto, com a “Lei da TV Paga”, o FNC, que inclui o Fundo Setorial do Audiovisual, teve forte aumento de receita, passando de R$ 87 milhões (nominais), em 2010 para R$ 1,1 bilhão até setembro de 2013, sobretudo por causa da arrecadação da Condecine e do Fistel. Excetuando os projetos de audiovisuais, os demais projetos incluídos no FNC são de pequena monta, destinados a Estados e Prefeituras, contemplando os projetos locais, que passam a ser beneficiados, ainda, com contrapartidas dos organismos subnacionais.

O maior projeto do FNC tem o valor de R$ 42 milhões e se destina à Secretaria de Estado da Cultura do Estado de São Paulo; o segundo maior, de R$ 15 milhões, destina-se à Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; em seguida, temos a Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul com R$ 3 milhões. A grande maioria dos projetos está abaixo de R$ 200 mil.

Já com a Lei Rouanet é diferente. No ano de 2012, foi autorizada a captação de 1.192.534.925,00 em renúncia fiscal a favor dos projetos culturais, ao passo que para 2013 o montante subiu para R$ 1.791.564.549,00. Em 2012, tivemos 2.909 projetos que captaram R$1.189.265.963,25 aportados por 3.096 pessoas jurídicas no montante de R$R$ 1.175.949.530,28. Aparentemente é uma situação bastante confortável para os proponentes, a não ser pelo fato de que por trás desses resultados há uma verdadeira “corrida do espermatozóide” para alcançar o óvulo dos recursos públicos da renúncia fiscal.

Oa dados disponíveis para 2011, mostram que 7.703 projetos foram apresentados ao Minc, sendo que apenas 3.598 conseguiram captar recursos, tendo havido, portanto, uma mortalidade de 54%. No tocante ao valor captado, ele correspondeu a 19,3% do valor total dos projetos apresentados, ou 23,4% do valor dos projetos aprovados. Há que se considerar, ainda, a concentração espacial: 49% dos projetos contemplados em 2011 tinham seus CNPJs no eixo Rio-São Paulo, sendo que o Sudeste responde por 80% do montante captado entre 2013 e 2014. Isso significa que um projeto sobre gastronomia, em termos abstratos, terá 23% de chance de ser bem sucedido, e se estiver em Minas Gerais, por exemplo, esse percentual cai para 10% aproximadamente. De 1996 a 2014, foram captados recursos para mais de 41 mil projetos. Destes, 52% eram do Rio e São Paulo, ao passo que todo o Nordeste não conseguiu ir além de 7%.

É uma ilusão que a Lei Rouanet seja um mecanismo eficaz para pequenos projetos. O que conta no jogo são os grandes players.  Os maiores incentivadores em 2013: Banco do Brasil, com 44 milhões; Banco Itau, com 32 milhões;  BNDES, com 31,5 milhões; Vale do Rio Doce, com 29 milhões; Bradesco, com 26 milhões; a Petrobrás, com 39 milhões; os Correios, com 19 milhões; a Cielo, com 18 milhões. Os maiores tomadores foram: Instituto Cultural Itau, com 21 milhões; Orquestra Sinfonica de São Paulo, com 19 milhões; T4F Entretenimento S/A, com 18 milhões; Fundação Bienal de São Paulo, 14 milhões, etc. Já os maiores projetos até hoje aprovados foram para o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (36 milhões em 2010); o Plano Anual de Atividades do Itau (30 milhões em 2009 e 29,5 milhões em 2010) e assim por diante.

Nota-se, então, como o caso do Itau é paradigmático: ele “oferece” ao sistema, com uma mão, 32 milhões e, com a outra, “capta” 21 milhões - se tomarmos como parâmetro a sua atuação no ano de 2013. É um caso típico de hermafroditismo, se pensarmos na corrida do espermatozóide. Claro, disso sobram 11 milhões que podem ser disputados pelos espermatozóides...

De modo geral, está claro que só logram sucesso os “espermatozóides” que tem acesso a certos óvulos, ou seja, contam com a política dos compadres: Petrobras, Banco do Brasil, BNDES, Itau etc, são as fontes vigorosas de recursos.

Mas se boa parte desses recursos públicos são de empresas estatais, por que não recolher o dinheiro diretamente para o Fundo Nacional de Cultura, por exemplo? Por que não construir um anexo à Biblioteca Nacional, que já não tem onde guardar o acervo de livros que só cresce? Não há outra explicação a não ser o propósito liberal de destituir o Estado da condição de principal sujeito do processo cultural que dependa do poder público. O mercado - no caso a Lei Rouanet - tende a destroçar o Estado.



(Segue em próximo post)

1 comentários:

Anônimo disse...

Muito bons os textos!
obrigado!

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