19/02/2015
Vitor, o homem que liquidou o salazarismo culinário
Ontem fui conhecer a Taberna da Esquina, aberta há pouco mais de duas semanas, e, conversando com Vitor Sobral, nos demos conta de que nos conhecemos faz mais de 23 anos. Uma pancada.
Foi num desses “festivais”, hoje tão comuns, quando um chef cozinha no restaurante de outro, e Vitor, vindo de Portugal, cozinhava no L´Arnaque, de Quentin Geenen de Saint Maur, na Oscar Freire (numa época em que a rua já era phina, mas não tão besta...).
Era uma cozinha moderna, uma nouvelle cuisine portuguesa, e por isso me impressionou tanto. Perfeitamente coerente com o que fazia Quentin no L´Arnaque e o que tentávamos fazer no Danton. Ainda não se respirava tanto glamour em torno dos restaurantes, mas já se comia bem melhor, no sentido que veio a se desenvolver a moderna cozinha no Brasil. E a nouvelle cuisine chegava de vagar, não com esse ímpeto que nos chegou a onda Adrià. Aliás, tenho a impressão de que ela ainda não terminou de chegar...
Em termos portugueses, São Paulo ainda estava totalmente entregue a uma cozinha pesada, cercada dos tradicionais azulejos portugueses e muito fado. Me parecia que, apesar de Salazar ter morrido em 1970, seu fantasma ainda comandava as panelas. Como fora a cozinha franquista das paellas, até a turma de Adrià assumi-la de modo completamente novo.
Pois Vitor, hoje, tem um império, o que mostra a justeza da sua estratégia e da sua cozinha: a Tasca da Esquina em Lisboa, São Paulo e João Pessoa; a Cervejaria da Esquina, em Lisboa; a Taberna da Esquina em São Paulo e a Kitanda da Esquina, em Luanda. É o rei das esquinas, mesmo quando seu restaurante não está numa. Conheço quatro desses lugares, e em todos eles se pratica uma cozinha distante do que comíamos há 20 anos, como nos restaurantes Abril em Portugal, Antiquarius, e outros mais que já não existem. Também nos restaurantes de Vitor os pesados azulejos foram substituídos por uma arquitetura leve, à base de madeira.
É claro que já vão despontando, em Portugal, os ultra-novos, como Avilez. Mas a nouvelle cuisine ainda é suficiente nova diante do tamanho peso das cozinhas portuguesas. Não é fácil passar a limpo tanta qualidade e tradição, ainda mais quando um exército de saudosistas - que vem desde Gilberto Freyre - insiste em elogiar o “jeito tradicional como fazem” no Alentejo ou em qualquer outro canto do pequeno país. A ideia de permanência associada a Portugal é terrível e sufocante.
Mas Vitor é um modernizador, sem ser um descaracterizador. E sempre foi um estudioso (ao tempo que o conheci, pesquisava na Torre do Tombo), sendo seu livro sobre bacalhau uma obra respeitável na constelação de livros assinados por chefes de cozinha. Além disso, ele tem ideias curiosas sobre o papel da pobreza no desenvolvimento culinário; por exemplo, o refogarmos em cebola e alho, como coisas que eram tudo o que o pobre tinha à mão; ou a utilização de certas partes do porco, que também requeriam a pobreza para se tornarem habito. São coisas que me permiti captar e registrar nesses mais de 23 anos de convivência.
E há muito, por exemplo, ele ensinou a não se usar amido para engrossar um molho - utilizando um legume ou outro vegetal para dar liga. Como o miolo da abobrinha. Resulta disso uma cozinha leve, saborosa, de tirar o chapéu. E Vitor é, ainda por cima, uma escola, onde aprenderam cozinheiros como Thiago Castanho. A culinária brasileira deve muito a ele. Especialmente o respeito à monumentalidade da cozinha portuguesa sem precisar pagar tributo ao salazarismo culinário.
Na Taberna da Esquina come-se o excelente bolinho de arroz, bacalhau e queijo; o filé de cavala, de lata, com abacate e coentros; a orelha de porco e vinagrete de cebolas e coentros; alheira com quiabos grelhados; o lombo de bacalhau grelhado com sua pele; acompanhamentos como batata doce assada, batata ao murro, purê de grão de bico, feijão verde com amêndoas, além da delicada salada de tomate com cebola roxa e coentros.
É um cardápio corajoso pela profusão de coentros, de conservas em lata, de coisas tão pouco “nobres” como uma orelha de porco. De sobremesa, ele não me deixou comer o prosaico leite creme que tanto gosto. Me ofereceu um Pudim de Azeite e Mel, com umas azeitonas... Bom demais. Coisas para as quais os paulistanos em geral torcem seus narizes. Vitor não está nem aí para isso, e tomara ajude a implantar um novo padrão culinário onde essas coisas possam crescer em importância e o Portugal pós-abril floresça grandioso.
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7 comentários:
Belo título, belo texto. Gosto muito do Vitor, desde que fui cobrir uma clínica dele no Hotel Senac de Campos do Jordão, cinco anos atrás, seguido de uma aula que deu no Anhembi Morumbi. Sua ideia de renovar tradições cabe perfeitamente nesta sua superação do Salazarismo.
Acho o titulo completamente desadequado...salazar com gastronomia? E o texto não explica essa relação.
"Salazarismo culinário"??? Haja paciência!!
Meu caro Dória. Sinto discordar de você, mas tive uma péssima impressão do Tasca da Esquina, alguns dias depois de sua inauguração, na Oscar Freire. Levei os pais da Teresa, portugueses e foi tudo desastroso, desde o bolinho de bacalhau, que parecia requentado, até os bacalhaus propriamente ditos e um arroz de pato meia boca que comi.
Talvez precisasse voltar, mas confesso que perdi a vontade.
Um grande abraço.
Sergio Lima
'o homem que passa pelo mesmo rio duas vezes nunca vai ser o mesmo homem, nunca vai ser o mesmo rio' belo texto! com certeza vou passar pra conferir...
!!!!
Os paulistas andam cada vez mais burros mesmo. Salazarismo no texto equivale a "conservadorismo careta", quase medieval, mais ou menos, em que São Paulo anda se transformando ultimamente. O texto etá ótimo e o título, idem; só faltou uma tarja preta explicando a ironia...
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