03/03/2015
A identidade culinária está na linguagem, não no prato
Me impressiona como o tema da “identidade” culinária, ao ingressar no horizonte das ciências sociais, criou tanta coisa complicada. Explica-se: a ideia é que a macdonaldização da alimentação corrói a identidade nacional. Os argumentos são utilizados para “defender” a “comunidade” versus o poder corrosivo da “sociedade” globalizada ou globalizante. É o raciocínio essencialista: a identidade está em tudo o de comer que é genuinamente nacional, regional ou local. Se afastar desse polo é perder essa condição definidora. Entende-se que esse raciocínio seja tão importante para a adoção de estratégias preservacionistas, ao mesmo tempo em que parece nos dizer que o propósito de manter a diversidade não é suficiente se não tocar à identidade.
Mas não acho que seja assim, tão mecânico. A identidade é relacional, não substantiva. A identidade não está nas panelas, nem nas papilas, mas, antes de tudo, na linguagem. É preciso que a língua se aproprie de palavras do universo alimentar tornando-as signos de pertencimento a um dado universo e isso depende de um certo isolamento, que permita designar um conjunto de pessoas como distinto dos demais pelo que comem. Por exemplo: o papa chibé é o modo como se pode designar o paraense ou como ele se apresenta para os de fora. E isso aparece como signo distintivo em contraste com outras modalidades do comer. Mesmo assim, entre os paraenses, se pode encontrar outras denominações mais “fortes” porque mais particulares ou próximas. Em Cachoeira do Arari, na ilha do Marajó, as pessoas se identificam por comer tamuatá - um peixe considerado o “pior” em termos do cheiro desagradável, o pitiú. Só é genuinamente de lá quem sabe comer, e aprecia, tamuatá.
Na tese que Adriana Salay Leme recém defendeu, na História da Usp (“Feijão, dono das tradições: representação identitária e consumo efetivo no Brasil (1973-2009”), ele inclui uma listagem de “trezentos e noventa e cinco designativos para os mais diversos feijões, sendo que às vezes variedades diferentes ganham o mesmo nome, ou, ao contrário, a mesma variedade pode apresentar nomes diferentes, principalmente se mudar a região”. Eu mesmo havia especulado sobre a relação entre a cor e a região do feijão (“Formação da culinária brasileira”) como elemento identitário. Em poucas palavras, devemos nos perguntar: por que a língua constrói uma variedade tão grande de designativos? Qual a sua utilidade prática?
Num livro interessante que me chegou recentemente às mãos (Euclides Neto, Dicionareco das roças de cacau e arredores, Universidade Federal da Bahia), lê-se: “para o illheense os itabunenses são papa-jacas; para estes, os de Ilhéus são papa-caranguejos e papa-siris. Ipiaú chama os de Jequié de bodeiros, papa-bodes; enquanto os de lá qualificam os de Ipiaú também de papa-jacas. Tais chingamentos terminam em brigas memoráveis, quando as seleções de futebol das duas cidades jogam, já tendo havido até mortes” (pág. 66).
Está claro que o uso metonímico de palavras retiradas do universo alimentar serve para desenhar o contorno de grupos humanos; ou seja, são procedimentos identitários bem diferentes daqueles nos quais se atribui um valor intrínseco, substantivo, ao alimento. É a relação entre “identidades diversas” que confere a elas valor. Ver, por exemplo, o texto de Paula Pinto e Silva no Dossiê Gastronomia, da revista Cult (nas bancas), sobre o uso da salsinha e do coentro. Dentre as múltiplas dimensões da vida convocadas para estabelecer fronteiras e, pois, identidades, uma é a culinária. Os cientistas sociais deveriam se debruçar mais sobre a linguística para compreender identidades...
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