06/02/2016

Sobre a leveza, na literatura e na gastronomia

É muito frequente ouvir alguém dizer, elogiando, que uma determinada comida é “leve”. Não se trata da quantidade de gramas, obviamente. Então, essa leveza metafórica refere-se a que? Certamente a algo excessivo que pesa na vida e se manifesta através do prato. Como uma alma pode ser leve ou pesada, assim é com a comida que não é medida em gramas.

Artistas e filósofos são pessoas que interrogam o nosso tempo, e sempre podem ir mais longe do que o que conseguimos com nossos próprios passos e raciocínios imediatistas. São antenas da cultura. E é bastante interessante a resposta que o escritor Ítalo Calvino deu à indagação sobre os valores que a literatura deveria buscar no atual milênio. No seu livro Seis propostas para o próximo milênio (1988), composto de aulas sobre literatura na Universidade de Harvard, ele identificou seis qualidades valiosas: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. E não parece que possa ser muito diferente do que se deva esperar de qualquer domínio da cultura. 


A qualidade da leveza se opõe ao pesadume, à inércia e à opacidade do mundo. De fato, o peso da vida moderna se manifesta no conjunto de regras, normas e restrições que acabam por aprisionar a existência em malhas  apertadas das quais queremos escapar. Algo parecido se percebe no discurso nutricionista, que quer se apoiar no essencial para o corpo que promete produzir se seguirmos estritamente suas normas. É a promessa de leveza mesmo que em oposição a antigos prazeres “pesados”. 


A luta dos nutricionistas modernos (distantes do modelo moralista de Harvey Kellogg)   é tentar revelar o prazer de uma nova cultura. Mas a leveza não será a fuga para o sonho ou o irracional. De fato, “preciso considerar o mundo sob outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle”; há uma leveza objetiva que nos é evidenciada em cada ramo das ciências, que nos mostram que “o mundo repousa sobre entidades sutilíssimas”, como o DNA, a informática, os impulsos neurológicos, os quarks, enfim, em coisas que, sem serem visíveis a olho nu, estão lá agindo, de modo delicado e determinante num plano mais profundo, acrescenta Calvino.

É difícil ver na culinária estas forças em ação? Não, não é. Basta observar os avanços no conhecimento da fisiologia humana, na química dos sabores, para vermos como esta área de atividades está alinhada com os demais desenvolvimentos de nossa era. Italo Calvino apontou que a “função existencial da literatura [será] a busca da leveza como reação ao peso do viver”. Coisa que qualquer cozinheiro moderno, ou enólogo, poderá subscrever, substituindo “literatura” por “gastronomia”. 


Afinal de contas, o que a gastronomia busca não é retirar o sujeito das submissões a que está preso para que, por um instante, em suspensão, respire livremente e se sinta leve - livre do excesso dos molhos, das complexas cocções, das etiquetas, reconhecendo-se justamente ao se apropriar do essencial, liberto de mascaramentos? Essa idéia de leveza, que mantém o pé no chão da culinária, não é difícil de ser percebida pelos cozinheiros. Mas é difícil de alcançar pois, facilmente, na sua busca, perde-se a graça. A leveza é capturar a graça, solta no mundo, numa malha fina que se leva à mesa. O cozinheiro pode ser um fabricante de almas leves, aproximando o poder libertador do ler e do comer.

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