07/02/2017

A "ciência da nutrição" e a gastronomia - III


3 - a medicalização e profusão das dietas

A uniformidade alimentar se esvai nas sociedades mais complexas, de sorte que alguma “escolha” será feita, seja pelas possibilidades econômicas das classes sociais, seja pelo passado cultural da família, pelas diferentes religiões e sistemas normativos que se pode abraçar. Se não há regra no comer, ele levará necessariamente à produção aleatória do corpo e sua proximidade com a finitude.

A diretriz mais importante da medicina, desde os seus primórdios, é prolongar a vida. Idéia que, levada ao paroxismo, parece esconder um propósito de imortalização do vivente na medida em que a medicina se desenvolve, convertendo-se num domínio técnico autônomo. Mas para que esse projeto se mantenha, é preciso que o homem seja concebido como um sistema fechado sobre si mesmo - com sua mecânica definida pela genética - e, tanto quanto possível, com suas “trocas” com o ambiente absolutamente controladas. E eis que, ai, reemerge o pensamento nutricionista como aliado da medicina.



É ingênuo pensar que para o nutricionismo a alimentação se opõe ao prazer de comer - ingenuidade da qual muitos nutricionistas são vítimas. Para o nutricionismo, o prazer se subordina à “boa espécie” do alimento. O indivíduo pode gostar de chocolate, por exemplo, mas antes de ser “gostoso” é preciso saber que sua virtude nutricional é apresentar altas doses de selênio que ajuda a prevenir o câncer, afastando o horizonte da morte. Mas também ele traz o principio da morte inscrito, o que aparece como “risco” no exagero do seu consumo. A dieta será o disciplinamento que restaura o velho princípio da temperança numa vida qualquer.

A disciplina de qualquer dieta busca a mens sana in corpore sano por vários caminhos, especialmente talhados para a multiplicidade empírica de corpos, tão diversos quanto a diversidade de soluções nutricionais que a sociedade atual oferece. São as varias “escolhas de Sofia” que a medicina nutricionista oferece como expedientes para se escapar das ciladas a que leva o ingênuo “bom para mim”. Cabe à ciência reafirmar o “bom verdadeiro” diante do avanço cego por tantos descaminhos.

Somente uma sociedade autoritária pode propugnar um só corpo por sobre a diversidade de genéticas e soluções alimentares adotadas livremente, e não é demais recordar que o nazismo o fez, como se a função do Estado fosse retomar o projeto moralista de Kellogg do século XIX. Mas o corpo sano é aquele em acordo com a ciência da longevidade, contando com a escolha do indivíduo em vez da imposição do Estado. Não que este seja isento destas, mas só o faz criando um amplo consenso do que é o “mal” alimentar: as drogas, certos agentes químicos utilizados pela industria alimentar, etc. 

O indivíduo mais e mais vive no terreno pantanoso das escolhas. Elas só podem ser seguras quando baseadas na confiança. Mas a própria industria destruiu a confiança construída ao longo do tempo na medida em que perdeu o controle de certos processos, produzindo, por exemplo, a anomalia da “vaca louca”. É quando o consumidor, desconfiado, demanda a certeza da ciência ou dos modelos tradicionais “comprovados” pela história. A volta à “cozinha das avós” da nouvelle cuisine tem este sentido de restauração da confiança na “boa alimentação”,  em contradição com a produção crescente de opções alimentares que a industria propiciava.


A dieta médica se afigura como o nicho seguro da produção do corpo sano e da longevidade. E ela servirá de modelo para as dietas eletivas, sempre baseadas em valores que o indivíduo elege como seu modo de vida ideal. Basta ouvir falar de uma situação anômala - como a doença celíaca, tão pouco expressiva estatisticamente - para se colocar ao abrigo de uma dieta restritiva de glúten. Em seguida, a própria industria começa a produzir alimentos sem glúten, criando o espectro de uma ameaça geral que pode ser evitada. São profissionais da nutrição, com conhecimentos científicos variados que, tal qual xamãs modernos, têm a chave da salvação diante dos riscos da livre escolha alimentar. E esta forma de legitimação será tão mais demanda quanto menor for o peso das soluções tradicionais que a cultura oferece, como a alimentação em padrões de outrora.

(segue em próximo post)

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