03/02/2017

A “ciência da nutrição” e a gastronomia - I


1. ascensão do nutricionismo moderno

É no curso do século XIX que se dá a mais profunda transformação no sistema de classificação ocidental do que é “comestível”. Além do colonialismo, que havia despejado sobre a Europa um sem número de novos produtos com diferentes ritmos de aceitação - o tomate chegou à Europa muito cedo mas foi considerado por muito tempo como “venenoso”; o milho, mais adequado à alimentação animal, e assim por diante -  tivemos a urbanização crescente,  que separou o indivíduo das fontes diretas de alimentação, e a industrialização, que produzia novas formas, segundo uma outra lógica que já não era a da agricultura.

O antigo sistema de classificação da medicina galênica, vigente ainda no século XVIII,  se desmontou. Era preciso um “novo sistema” para ler o mundo, e este foi fornecido pelo cientificismo em alta em todos os domínios da cultura ao longo do século XIX.

É da corrente filosófica do materialismo alemão que vem a idéia de que “somos o que comemos”, principio motor do “nutricionismo”, que é a ciência que busca a essência da alimentação. A busca dessa essência corresponde ao desenvolvimento do antigo projeto iluminista que investiga as leis que governam as coisas do mundo como “leis” que se escondem dentro das coisas mesmas, à semelhança de um desígnio divino ali escondido.

A nutrição aparece como problema autônomo na biologia especialmente entre os chamados neo-lamarkianos, que a entenderão como uma dimensão da adaptação, isto é, da relação do vivente com o meio onde se desenvolve.



O alemão Ernst Heckel, um expoente dessa corrente, escreverá: “Dando a nutrição como causa determinante à adaptação, considero esta palavra no seu sentido mais lato, e designo assim a totalidade das variações materiais que o organismo sofre em todas as suas partes sob o influxo do mundo exterior. Para mim, a nutrição não é somente a ingestão de substâncias realmente nutrientes, mas a influência da água, da atmosfera, da luz solar, da temperatura, de todos os fenômenos meteorológicos designando-se pelo nome de clima. Compreendo por nutrição ainda a influência mediata ou imediata da constituição do solo, da habitação, da ação variada e importante que os organismos circunvizinhos exercem, sejam eles amigos, inimigos ou parasitas, etc, sobre cada planta ou sobre cada animal. Todas essas influências e outras mais importantes afetam o organismo na sua composição material e devem ser consideradas debaixo do ponto de vista das permutas materiais. A adaptação será o resultado de todas as modificações suscitadas nas trocas materiais do organismo pelas condições externas da existência, pela influência do meio ambiente”. 

Ora, nessa concepção de Haeckel, a nutrição dos viventes é que determina como eles são. Ele acrescenta: “O nosso humor, os nossos desejos, os nossos sentimentos são muito diversos conforme estamos saciados ou com fome. O caráter nacional dos ingleses e dos gaúchos da América do Sul, que se alimentam quase que de carne, isto é, que fazem uma alimentação rica em azote [nitrogênio], não é o mesmo do irlandês que se alimenta de batatas, nem do chinês que vive de arroz, porque um e outro fazem uma alimentação pouco azotada”. 

O pensamento que dará origem às ciências da nutrição surge abraçando essa concepção e se aproveitando dos avanços da história natural a partir do século XVIII, da química e da fisiologia, afastando-se da velha idéia simples de que os alimentos se classificavam em animais e vegetais, se apropriando da análise dos seus componentes químicos, tomando-os como resumo de substâncias alimentares capazes de produzir impacto ou impressionar cada sistema orgânico. 

Nesse quadro  da nutrição, teremos a água (solvente universal dos nutrientes), os amidos, os açúcares e a gordura como portadores dos elementos químicos essenciais ao organismo: o carbono, o hidrogênio, o oxigênio e a albumina, que “carrega” o azoto ou nitrogênio.

Com base nesse tipo de química alimentar, os tratados médicos do século XIX começam a discutir a dietética antiga (baseada na idéia de equilíbrio entre o calor, o frio, o seco, o úmido), redefinindo-a segundo as exigências de regimes alimentares diversos. Surgem obras que mostram, comparativamente, que a ração de um agricultor francês, por exemplo, deveria ter mais azoto e menos carbono que a ração de um operário irlandês. 

Modernizando-se, esse pensamento hoje incorpora questões nutrigenéticas, nutrigenômicas e epigenéticas, que implicam em critérios mais finos de identificação dos indivíduos e o meio que o alimenta, refinando os critérios de definição da população sobre a qual inside.


Ora, se o vivente é passível de ser conformado pela alimentação, compreende-se que logo o nutricionismo abraçou também propósitos de “qualidade”, isto é, traçou o que lhe pareceu o caminho para a produção de seres superiores pelo que comem. E desde logo ele assumiu uma dimensão moral. 


Registre-se o discurso nutricionista norte-americano, de cunho moralista, de John Harvey Kellogg, que chegou a dizer que “a gourmandise é a ruína de uma nação”.  Ora, conduzir o homem pelo caminho da boa alimentação capaz de elevar o espírito parece ser a missão moral do nutricionismo. 

(segue em próximo post)

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