18/11/2017

Joalheria culinária e comida popular


Içá, savitu: já ouvi dizer que homem faminto come frita com farinha essa imundície (Riobaldo, em Grande Sertão: veredas)


Para aqueles que gostam de questões intelectuais, há de ser interessante estudar a relação entre a chamada “alta gastronomia” e a comida popular brasileira. Isso por varias razões, sendo uma delas a utopia de construção de uma “cozinha brasileira renovada”.

 Sim, porque, como na musica erudita, ou no jazz, muitos temas populares são incorporados e retrabalhados de forma a apresentar produtos novos, de fruição mais sofisticada - a exemplo do que fez Villa-Lobos com o folclore brasileiro. O livro de Alex Atala - Escoffianas Brasileiras (2007) - também é declaradamente uma tentativa nessa direção. Eu mesmo procurei, no posfácio do livro, chamar a atenção para a originalidade do sorvete de whasabi com jabuticabas, esse local food que só poderia ser paulistano e, portanto, para o caminho parecia fértil e promissor para as novas gerações.

E de lá para cá Atala fez muitas outras coisas, nem todas diretamente na cozinha, mas uma delas permanece nessa linha e merece nossa consideração: a incorporação da formiga no cardápio gastronômico.




Essa iguaria indígena desde logo foi assimilada pelos brancos. Gabriel Soares dos Santos já escrevia: “a estas formigas comem os índios torradas sobre o fogo, e fazem-lhe muita festa; e alguns homens brancos que andam com  eles, e os mestiços, têm por bom jantar, e o gabam de saboroso, dizendo que sabe a passas de Alicante; e as torradas são brancas por dentro”. O Padre José de Anchieta, escreveu que “são um tanto ruivas, trituradas cheiram a limão”.

O modo caipira de utiliza-las era: tira-se as pernas e cabeças das formigas, põe-se o abdome de molho em água e sal por meia hora. Escorre-se e leva-se à frigideira com banha, mexendo sempre para fritar sem queimar. Quando bem torradas, acrescenta-se a farinha de mandioca e, se desejado, pila-se em pilão para fazer paçoca. Esse hábito alimentar é ainda corrente no Vale do Paraíba, em cidades como Taubaté, Silveiras, Guaratinguetá, São José dos Campos. Nessa região, aliás, havia até pouco tempo o restaurante do folclorista Ocilio Ferraz, notável por sua paçoca de içá. Aliás, esse hábito devia ser muito mais amplo, pois  pude testemunha-lo, quando criança, em Araçatuba, e há referencias bibliográficas que dão conta dele em vários lugares do Brasil, inclusive na Amazônia. 

Na introdução da formiga na “alta gastronomia”, Atala realiza duas operações importantes. Em primeiro lugar, não busca a formiga caipira, a içá do vale do Paraíba, tão próximo a nós, paulistanos. Vai busca-la na Amazônia. Em segundo lugar, associa-a ao abacaxi. 

Sob o deslocamento, diz o site do seu restaurante DOM: “Tradição alimentar em algumas etnias indígenas da região amazônica, especialmente entre os baniwas, a utilização de formigas como ingrediente tem sido profundamente estudada pelo chef Alex Atala e vem surpreendendo chefs e críticos gastronômicos de vários países”. 

Mas era necessário ir tão longe? Certamente não, e que se refira aos baniwa advém de sua proximidade com o Isa (Instituto Socioambiental), que integra o ATÁ (aliás, diga-se que a palavra Ata, remete também a Atta laevigata, ou formigas cortadeiras, saúvas, presentes em todo o Brasil, e que desenvolve vários projetos comunitários indígenas no alto rio Negro). O mesmo fenômeno observa-se com os cogumelos yanomami, que são os mesmos existentes em reservas florestais paulistas, mas o ATÁ prefere promover aqueles das terras distantes dos yanomami. Há, nos dois casos, a materialização de uma idéia de terroir distante que é, ao mesmo tempo, o alheamento em relação ao projeto local food, tão acalentado pelos chefs.

Já a associação da formiga com o abacaxi, considerando o “limão” presente no ferormônio da formiga, que o jesuíta José de Anchieta já havia denunciado, trata-se da reiteração de um gosto comum aos brasileiros, verificável quando se serve abacaxi com raspas de limão nos restaurantes.

Têm-se, então, na minha leitura, além de um deslocamento geográfico e imaginário (Amazônia), uma re-submissão ao gosto comum, uma ponte com o paladar popular onde se inscreve a novidade da similitude ferormônio/limão.

Outra característica semiótica da formiga apresentada por Atala é o fato de ter sido fotografada pelo estilista de food design, o fotografo Sérgio Coimbra, em uma redoma de vidro. Sergio Coimbra busca há anos criar uma linguagem que expresse esteticamente a brasilidade, segundo sua concepção minimalista. Num menu recente, Atala apresentou, ainda, a mesma formiga efêmera pintada de dourado, como se evocasse um inseto da magnifica joalheria imortal de Lalique. 

Não é demais observar que a redoma de vidro, ao mesmo tempo em que revela visualmente, isola o objeto do tato e do ambiente circundante. Coloca-o numa outra dimensão, assim como a simulação mineral (ouro) do mesmo objeto. 

Há, portanto, na estilização da alta gastronomia, conforme praticada por Atala, um jogo simbólico bastante complexo, de idealização, aproximação/afastamento que acaba criando um terreno próprio, único, bastante distante e descolado do seu ponto de partida: a tradição de se comer içá. O fato ainda de remeter à Amazônia, mostra uma hierarquia dos territórios alimentares. São Paulo tem uma elite que desde o século XIX despreza esse hábito, como registrava um poema:

Comendo içá, comendo cambuquira
Vive a afamada gente paulistana,
A mesma a quem chamei gente caipira,
Que não parece ser da raça humana.

A Amazônia, ao contrário, faz parte do ideal do mundo “civilizado” como parcela do planeta a ser preservado a qualquer custo, especialmente por seus tesouros biológicos únicos. É este componente que “doura” a formiga; é esse ideal distante que se encerra na redoma de vidro.

Assim, o aproveitamento de um tema popular quase não guarda relação com o mundo real “popular”.  Mas, como no jazz, qualquer tema é útil para improvisações, e nem é necessário que os índios estejam de acordo com a apropriação que fazemos de suas culturas. Como no jazz, são os ouvidos modernos que julgam a pertinência das tradições selecionadas a dedo. 




Fotos: Sergio Coimbra, Pedro Martinelli


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