25/07/2018

Ética e estética na cozinha (ou “não me venha falar da malícia de todo cliente”)



É preciso ter claro que ética e estética caminham juntas. Se o chef de cozinha optou por um caminho que resulte no reencantamento do mundo, precisa fazê-lo pela trilha das aquisições estéticas...e éticas.

Ele persegue uma utopia. Um futuro distinto do presente, baseado numa nova relação dos homens entre si e destes com a natureza. E é a crescente adesão dos clientes a este tatear o futuro que irá construir uma nova sociedade.

Trata-se, então, de uma mudança profunda nas relações sociais hoje consagradas. Não é possível, por exemplo, construir uma alimentação saudável e sem desperdícios nos estritos marcos do capitalismo selvagem que hoje prepondera. O agronegócio, essa materialização da “revolução verde” de meados do século passado, necessita ser capital intensivo, baseado  em insumos, máquinas e variedades vegetais que, garantindo ampla produtividade do trabalho, maximizem lucros. Não é assim que se alimentará "o planeta inteiro", como os neo-malthusianos acreditam.  O agronegócio consome a natureza em proporções alarmantes: destrói a biodiversidade, esgota a produtividade natural e a substitui por uma produtividade artificial que torna o campo uma extensão da indústria. Utiliza insumos que destroem o próprio homem: os agrotóxicos.


Construir um caminho que afaste-nos desse beco sem saída é o desafio que se coloca a todas as pessoas conscientes e àquelas que, pela posição na estrutura produtiva, podem mudar os rumos da cadeia alimentar. O chef de cozinha pertence a essa gama de pessoas.

Do ponto de vista ético o que ele precisa é trabalhar essa diretriz no dia a dia, mudando radicalmente o sentido da sua produção. Do ponto de vista estético, projetar e construir suas fantasias sobre uma nova base material limpa de agrotóxicos, por exemplo.

Tenho insistido muito na necessidade de se substituir o salmão de granja pelo salmão selvagem;  e poderia acrescentar o tomate de cultivo convencional pelo tomate orgânico, assim como o pimentão, o abacaxi, etc. Essa atitude corresponderia a simplesmente levar a sério o acumulo de conhecimentos sobre os malefícios produzidos pelo modelo convencional de agricultura e piscicultura.

E por que os chefs não o fazem com facilidade? Em primeiro lugar porque, em vez de educar o mercado, curvam-se a ele de modo acrítico e subserviente. Ficou para trás aquele “heroísmo” de chefs que simplesmente se recusavam a servir Coca-Cola ou suco de laranja em seus restaurantes. O que evoluiu parece ter sido a subserviência, conduzida pela competição acirrada, e não a independência e o esclarecimento do próprio público.

A alienação do chef consiste justamente em não ter posição definida, deixando ao mercado a tarefa de, no seu jogo cego, “resolver” os conflitos entre modelos alimentares.

A construção de novas ciladas parece ser o caminho perseguido com frequência. Uma solução de compromisso que nada soluciona. Por exemplo, fazer farinha na casa, a partir de grãos orgânicos, mas seguindo na utilização  do tomate envenenado.  São tantas as estratégias de auto-engano e engano deliberado que seria tedioso listar.

A ética é apenas a opção por um caminho de verdade, sem meias verdades ou meias opções. Por isso, é necessária uma “revolução ética” na cozinha atual, não uma contemporização com dois modelos: o do agronegócio e o da produção agroecológica.

Os chefs de cozinha estão em posição de dar o seu testemunho prático sobre a necessidade dessa revolução. Optar pela vida, num contexto de fomento das práticas que encaminham a morte, é reencantar o mundo.

Adjetivos como “artesanal”, “natural”, “orgânico”, nada representam se não estiverem imersos numa nova concepção de vida e trabalho que solidarize dos produtores aos consumidores finais, numa cadeia alimentar voltada para o sustento da vida e o combate à morte.

É claro que a opção é de cada um. Mas que estejam certos de que, mais dia menos dia, a consciência social que vai se formando saberá alijá-los do caminho do bom, do belo e do agradável, se não souberem agir desde já como parteiros do futuro.

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