16/02/2019

Sobre a “fé” e a má-fé no jornalismo gastronômico




A fé está se tornando uma desgraça no Brasil, porque algo de foro íntimo foi alçado à condição de uma medida social. Desgraçadamente. E é por isso que Marcos Nogueira vem se destacando por ser um tipo de crítico que põe em dúvida “verdades estabelecidas” no mundo dito da “gastronomia” (onde, diga-se, tudo é imaginação e não "verdade").  Sua coluna na Folha, “Cozinha bruta” é militante e parece afirmar que, por baixo do mundo ilusório, existe uma verdade nua e crua, bruta. Ele acredita na “verdade” e sua missão, pensa, é revelá-la. E libertar o leitor.

Mas o seu mundo não é o da investigação, do bom jornalismo. É um mundo de conjecturas. Na coluna de hoje investe contra a acreditação (certificação) dos produtos orgânicos. “Você acredita em alimentos orgânicos?” Desde quando o estado físico, material, do que se come depende da fé?

A fé anda mesmo muito difundida como valor nesses tempos bolsominianos. Até Jesus sobe na goiabeira. Mas reduzir a questão sobre a veracidade do processo de produção – se “orgânico” ou não – a uma questão de fé é, no mínimo, de má-fé.

Alimentos orgânicos certificados...Certificação não é o mesmo do que passar um atestado de boa fé. É um processo investigativo, que supõe testes laboratoriais, auditoria de práticas correntes, enfim, o fruto do trabalho daqueles que devem dizer para a sociedade se um produtor e seus produtos estão em conformidade com normas conhecidas.

A AAO, responsável pela feira da Agua Branca, é uma instituição de 30 anos, fruto da associação de engenheiros agrônomos de São Paulo que buscavam caminhos alternativos à “revolução verde” cujos efeitos, já percebiam, eram desastrosos. Dentre eles estava José Lutzenberger, cuja folha corrida em prol do ambientalismo vale a pena o jornalista consultar. Mas foi só em 1989 que um grupo de 84 sócios conseguiu fundar a AAO – Associação de Agricultura Orgânica.

A instituição é das mais respeitadas no front ambientalista e, sem dúvida, das mais aguerridas na luta pela agricultura orgânica. Dentre inúmeras atividades e projetos, hoje ela reúne, na feira da Agua Branca, mais de 80 produtores, fiscalizados toda semana, com plano de manejo orgânico e controle na própria propriedade. E há o “Selo Brasil Orgânico”. Selo que exige uma “Declaração de Cadastro” do produtor junto ao MAPA e que o produtor deve ter em sua barraca, para exibir para quem deseje conferir.

Contrário senso, o nosso articulista afirma, endossando aquela que acredita ser “uma das raras vozes críticas e sensatas” (veja, ele “acredita” em quem lhe convém para a linha argumentativa): “O Brasil falsifica roupa, bebida, azeite e até remédio, mas tem gente que acredita em produtos orgânicos”. Em outras palavras, a sua fé particular é de que “o brasileiro” é um sujeito de má fé, sempre.

Claro, Marcos se põe a salvo desse juízo tão genérico: “Não tenho motivo nem repertório para contestar os métodos e a idoneidade das certificações orgânicas no Brasil. Resta-me tomar por verdadeiros os produtos que vêm com o selinho”. Nisso se revela mau jornalista, pois de novo invoca a fé em vez de “duvidar” e investigar se suas dúvidas procedem. Só a dúvida apurada liberta. E ai entra a fé na sua própria subjetividade como critério último: “Sei lá se o cara segue religiosamente todos os mandamentos da agricultura orgânica, mas o tomate que eu compro dele é indiscutivelmente gostoso”
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Tenho certeza de que o salmão que os seus leitores acham “gostoso” é, indiscutivelmente, um veneno para a sua saúde. Para Marcos isso talvez seja irrelevante, como é a distinção entre agroecológico e convencional, se for “gostoso”. É quando revela sua fé na grande industria: “É implausível supor que empresas do porte da Unilever ou da Nestlé queiram arriscar a reputação com fraudes tacanhas”.

Não percebe ele que a fraude muitas vezes faz parte do negócio e compõe a margem de lucratividade dessas empresas. Basta lembrar o escândalo – apurado pela Polícia Federal e pela imprensa - da JBS e de como contornava os problemas sanitários corrompendo fiscais do Ministério da Agricultura. Por isso é necessário uma imprensa livre e que sobretudo saiba o que fazer com a liberdade, sem avalizar os grandes conglomerados alimentares pela “fé”.

Existe em marcha uma revolução agroecológica. Ela não conta com o apoio de que dispõe o agronegócio e a grande indústria, nem com a totalidade da opinião pública. Depende mesmo é de mudanças de comportamento de produtores e consumidores, construindo uma cadeia alimentar confiável do campo ao prato. É a isso o que se dedica a AAO, tantos produtores, ONGs e movimentos como o Banquetaço. É esse caminho que levará a um futuro mais seguro em termos de saúde e nutrição e, indiretamente, de um meio ambiente preservado. Um caminho longo sem dúvida. 

Marcos Nogueira não precisa “acreditar” nesse caminho nem em seus resultados. Mas qual o sentido de levantar dúvidas se não sai a campo para investigar, confirmando ou infirmando o que suspeita? Ao não fazer isso, e portanto auxiliar o que precisa ser rigoroso e baseado em pressupostos científicos, ele trabalha pela sua desacreditação e pelo favorecimento do mainstream, onde se aloja o grande capital inimigo dos questionamentos da “revolução verde”.

Bolsonaro colocará um general de pijama na direção da Anvisa. O Presidente é um homem da fé (ou da "Obra", como preferem) e acredita que o exército é o único estoque disponível de honestidade. Oquei. Mas certamente não precisamos de uma imprensa de pijama a fazer coro ao espírito que encarnou momentaneamente na República.

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