08/04/2009
A manteiga! Dê-me a manteiga! Sempre a manteiga!!
Fernand Point (1897-1955) – enormíssimo cronópio, como diria Julio Cortázar se referindo a Lezama Lima – é quem aparece nesta foto de Robert Doisneau. Talvez a figura mais enigmática da gastronomia moderna.
Pouco se sabe sobre ele, se comparado com outros chefes célebres. Mais por razões involuntárias do que qualquer outra coisa, pois esteve na contramão de tudo o que facilitaria o registro da sua grandeza: atuou no difícil período entre guerras e na cidade de Viena, longe da capital gastronômica de Lion.
Abriu seu restaurante - La Pyramide - com apenas 26 anos, em 1923, e lá ficou até a sua morte, tendo atravessado os anos difíceis da guerra com coragem e galhardia. Durante o governo de Vichy, na França, servia gratuitamente os refugiados da invasão alemã; quando os alemães passaram a procurar seu restaurante, Point deixou de servir jantares; quando eles começaram a reservar mesas para almoço, fechou o restaurante. A política também passa pela gastronomia e a reputação de um chefe só prospera do lado certo.
Point não escreveu livros. Seus ecos nos chegam sobretudo pela geração de chefs que formou e que revolucionou a gastronomia do século XX. Paul Bocuse, Alain Chapel, François Bise, Louis Outhier, e Jean e Pierre Troisgros trabalharam com ele e são os expoentes da sua “escola”, da qual derivou a nouvelle cuisine. É compreensível que assim seja, pois Point era de opinião que a “principal obrigação de um cozinheiro é transmitir para a geração seguinte tudo que aprendeu e experimentou”. Ele criou um estilo que se traduzia na sua prática e quem estava ao seu lado pôde aprender.
Mas o que ele mesmo aprendeu e experimentou ficou mais na dependência de testemunhos orais do que de escritos, pois seu único livro – Ma Gastronomie – não foi exatamente escrito como tal, sendo a coletânea de um caderno de aforismos, uma entrevista, depoimentos de terceiros, alguns menus que preparou em datas célebres e, claro, um conjunto relativamente pequeno de receitas manuscritas (apenas 169).
As suas receitas, que não foram publicadas em vida, não eram dirigidas a iniciantes em matéria culinária e, neste sentido, eram radicalmente distintas das de Escoffier. Trata-se da “cozinha inspirada”, de sorte que, onde se lê em Escoffier “quatro gramas de sal”, Point deixa para o último momento a definição da sua dose, em função da “intuição” e do sabor dominante. As receitas são sugestivas, devendo ser interpretada pelo cozinheiro.
Sua cozinha é a do foie-gras, da trufa, das coisas do mar, da cozinha regional elevada a um grau de sofisticação de modo a ganhar, imediatamente, uma dimensão transcendente. Era também a cozinha das coisas simples. Como essa receita:
Pudim de tapioca: “Ferver meio litro de leite com 100 gramas de açúcar e 100 gramas de tapioca grossa. Deixar cozinhar e colocar num prato inglês, levando ao forno para dourar (ou salpicar açúcar e dourar com um ferro quente)”. Somente isso, nada mais. E note quão pouco açúcar!
Mas se pode imaginar o impacto desse brûlée de tapioca na distante Viena...
Point é o cozinheiro “da alma”, do serviço impecável, do chef como personagem de salão e do vinho como componente de destaque na refeição. É também quem valoriza as matérias primas em sua simplicidade, num jogo contraditório entre o “essencialista” (que encerra nos molhos, esses artefatos, a "alma" ou o melhor das coisas da natureza) e o “naturalista”, que deixa os ingredientes falarem por si.
Eis algumas de frases meditadas de Point, que alimentam o mito da sua figura lendária:
O cozinheiro perde a reputação quando se torna indiferente à sua obra
A cozinha não é invariável como uma fórmula do Codex. Mas é preciso evitar mudar as bases essenciais
Uma boa refeição deve ser harmoniosa como uma sinfonia, e também bem construída como uma catedral romana
Não são os molhos que distinguem um bom cozinheiro. Entretanto, na orquestra da grande cozinha, o saucier é um solista
O sucesso é uma soma de pequenas coisas feitas ao ponto
Os livros de cozinha se parecem com os frades. O melhor é aquilo que eles fazem por si próprios
Eu acredito, do fundo do coração, que se vai ao fundo [trocadilho com “fond”, que sempre usava no singular] dos molhos como ao fundo dos poços: é lá que está a verdade
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Critica da critica
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4 comentários:
Doria, a frase do sucesso também tem um trocadilho com o nome do autor.
Sandro (Um Litro de Letras)
Que tapioca grossa será essa? a que se umidifica e penera para se obter a farinha para goma? a já processada? a que se usa para sagú?
Preciso dizer que caí de paraquedas nesse blog (vai post no blog do marcelo katsuki) e me perdi durante umas belas 3 horas lendo tudo e depois lendo em voz alta para a minha familia, e depois relendo para poder citar aos quatro cantos o que eu li com mais exatidão.
Não entendo nada do mundo gastronômico e tinha uma visão que mudou muito com a leitura deste blog.
Obrigada.
erro acima
Descobri esse blog VIA post no blog do marcelo katsuki
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