07/04/2009

A “volta à África” através do cuscuz


A nossa lida histórica com o cuscuz é bastante curiosa. Ele nos chegou como prato, vindo do Magreb (Argélia, Tunísia e Marrocos), trazido por mercadores portugueses e, ao que tudo indica, penetrou a colônia a partir da Capitania de São Vicente.
O Magreb era, na Antiguidade, a “cesta do pão de Roma”. O trigo de grão duro, típico da região, disseminou-se especialmente por obra dos judeus expulsos da Península Ibérica pelos reis católicos em 1492. Chegou até a Sicília, tornando-se base das massas secas, por oposição ao trigo macio, nativo da Europa. Françoise Sabban escreveu uma magnífica história desse percurso (Pasta: the history of a universal food, Columbia Univ. Press, 2002).
A sêmola de trigo de grão duro foi o carboidrato por excelência da culinária turco-otomana, cujo pão era o warka, uma panqueca de semolina. As especiarias da Ásia foram incorporadas à dieta básica por influência árabe, ao tempo da dinastia Muslim.
O cuscuz não é um “prato típico” do Marrocos, mas a essência de vários pratos, espalhado por todo o Magreb, tendo por base a vertente culinária judaica.
A leitura chauvinista do cuscuz faz com que cada um dos três países do Magreb o reivindique como “prato nacional”, quando, só na Argélia, registram-se mais de 3.000 variações suas, sendo que cada família se diz detentora do “melhor cuscuz”. O comum é a umidificação da sêmola e sua cocção ao vapor. O resto varia amplamente.
O cuscuz marroquino ou argelino foi estilizado por restaurantes parisienses voltados para o público de imigrantes (legumes, carneiro, harisa...). De lá, foi trazido para o Brasil quando da segunda “abertura dos portos às nações amigas” (sic) promovida pelo governo Collor. Assim como chegou o riso arbóreo, chegou a sêmola de grano duro.
Esse cuscuz neo-adventício se contrapôs de maneira vigorosa àquele já adaptado desde os tempos coloniais.
Gastronomicamente não sei qual o melhor carboidrato: se a farinha de milho, com suas “notas doces e amargas” ou a sêmola de grão duro. O fato é que o cuscuz marroquino que se faz por aqui tem o sentido, ainda que inconsciente, de uma “volta à África” de natureza mitológica. Um caso raro de regressão, comandada pelos cozinheiros incapazes de confrontar as soluções distintas representadas pelo milho e pelo grano duro. Esse confronto é especialmente difícil em São Paulo, onde o velho cuscuz deixou de ser acompanhamento, derrotado pelo arroz, e, ao passar para a panela, perdeu a qualidade da cocção ao vapor. Ao dar esse salto, mudou também seu lugar na refeição. Tornou-se “entrada”, não mais “prato de resistência”. Assim, a sêmola de grão duro e a farinha de milho ficaram culinariamente muito distantes.
Na Europa, o “exótico” é o mundo todo, inclusive o Magreb. Nós, ex-colonias, trazemos o “exótico” em nós mesmos. Não é esse o discurso miscigenista? Pela singularidade desse processo todo, o cuscuz talvez mereça mais atenção dos estudiosos da culinária e gastronomia brasileiras.

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