20/06/2009

De que crítica gastronômica precisamos? - IV

Agora, por um bom período (e até que se torne enfadonho), a imprensa especializada em gastronomia porá em relevo os ingredientes. Mas, o que é ingrediente?
Há uma maneira estreita de entendê-lo, como se fossem apenas as coisas in natura. Ora, ingrediente e produto são a mesma coisa. O ingrediente é o que está no inicio do processo de produção, entrando como matéria-prima. Mas ingredientes podem ser produtos: o queijo minas artesanal é um produto que é ingrediente para fazer o pão de queijo. Então, a condição de ingrediente ou produto depende da posição no processo de produção e, mudando esse lugar, mudam as suas determinações.
As determinações dos produtos naturais (animais ou vegetais) advém de duas fontes: a sua genética e a sua nutrição. Uma, digamos, determinando o genótipo e a outra o fenótipo, se entendermos a nutrição como o conjunto de influências meio-ambientais, e não só a alimentação da espécie. Nem tudo, nesse processo complexo, é útil ao homem.
Todos os ingredientes, mesmo os apresentados in natura, arrastam dentro de si uma história. Esta história é composta do trabalho humano que, ao longo dos séculos, arrancou aquela coisa da natureza tornando-a coisa útil; pela genética do produto, especialmente pela seleção artificial (mais recentemente, inclua-se ai a transgenia) e pela nutrição. Há, portanto, no ingrediente, o resumo de uma história natural da coisa e de uma história social humana sobre a sua utilização e transformação, especialmente sob domesticação.
A ideologia nutricionista é a que mais de perto nos afeta, abrindo flancos perigosos para o organismo humano. Reduzindo tudo a nutrientes, tendo por trás uma ideologia médica sobre saúde e longevidade, normalmente deixa de lado as condições de produção que afetam os ingredientes de forma decisiva.
Os casos do frango e do salmão são exemplares. Há a idéia comum de que peixe e frango são “mais sadios” do que carne vermelha. Será?
Salmão de cativeiro e frango são, hoje, espécies doentes. Foram transformadas de coisas naturais em resumo de uma seleção genética e um modelo nutricional sob confinamento que, em geral, retirou-lhes boa parte do sabor e da sanidade. São espécies que merecem compaixão.
Não adianta serem propagados como “frescos”, “de qualidade”, se esta qualidade é, do ponto de vista constitutivo, a negação daquelas qualidades originais.
Fazer eco ao oba-oba dos chefs em torno dos ingredientes “frescos” e “naturais” que usa é promover a mistificação, a ilusão a respeito da nossa própria nutrição. São palavras que, quase sempre, escondem uma história de valor duvidoso, quando não nocivo para a alimentação humana. No entanto constituem verdadeiro mantra gastronômico.
É bom que o frango não consuma hormônio de crescimento nem antibiótico? Parece que sim. Isso nos autoriza a chamá-lo de “natural”? Certamente todo produto que comemos é “natural”, visto que não há criação sobrenatural de frangos ou do que seja. Mas se os frangos, aglomerados como são, não consumir antibiótico poderá colocar em risco nossa saúde mais ainda. O mesmo ocorre com o salmão.
O homem criou uma “segunda natureza” em torno de si e ela não deixa muitas portas de escape para a “natureza natural”. Essa fatalidade nos obriga a observar, sempre, as condições de produção desde o primeiro momento até o prato servido no restaurante. É ingenuidade pensar que, observando restaurante adentro, possa se formar um bom juízo sobre a qualidade do que comemos. Há lugar, em nossa imprensa, para um Ralph Nader brasileiro.

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