11/09/2009

O cravo destemperado

Pelo senso comum, temos que “temperar” é dar sabor a um prato. Cada um tempera segundo seu gosto pessoal. As culturas também “temperam” para nós. Nos dizem o que devemos utilizar. “Bem temperado” é o mesmo que com o sabor marcante dos aditivos saporificantes.

Desde o século XIII a palavra temperar sugere, por via culta, dominar, moderar, misturar, unir, ligar nas justas proporções, equilibrar, governar e assim por diante. Só no século XVI aparece “tempero” como coisa individualizada, usada para temperar.

Em espanhol, o seu equivalente – adobar – aparece com o sentido de ornar, compor, “guisar as comidas”, ou ainda “marinar” as carnes para dar gosto (sazón) e conservar. E sazón é o ponto de madureza das coisas, o estado de perfeição; ou gosto e sabor que se percebe nas comidas.

A filiação dessa noções à medicina hipocrática, do século III a.C., parece clara. O médico inglês Eleazar Dunk, no século XVII, dizia que o ensino da medicina visava “a preservação da saúde e a prevenção das doenças”, exigindo dos médicos conhecer “os elementos (ar, água, terra e fogo), os temperamentos (frio, úmido, seco e quente), os humores (bílis negra, bílis amarela, fleuma e o sangue), os espíritos (naturais, vitais e animais), as partes do corpo, as faculdades e as ações”.

As especiarias, conforme utilizadas na Idade Média e alguns séculos depois, tinham esse sentido: “temperar” os humores e temperamentos, equilibrando-os com os quatro elementos, de forma a garantir a saúde. Era uma arte difícil a “arte médica”, e exigia a cooperação dos cozinheiros.

É provável que só bem recentemente o uso dos temperos tenha se “destemperado”. Ao menos o açúcar se transforma em “alimento” a reboque da revolução industrial. Mas, e o gengibre, a canela, a noz moscada?

Parece que, com o tempo – como nos sugerem alguns sentidos de “adobar” – o paladar se tornou o juiz da justeza da “arte médica”. Se é “gostoso”, é “bom”. E talvez por isso mesmo Kant nos adverte que o “agradável” aos sentidos não é o mesmo que “bom”. O agradável pode ser o destempero do bom. E é dessa perspectiva crítica que nasce a noção de “abuso” via exageração do consumo do que é agradável.

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