De uns tempos para cá tenho visto como o açúcar invadiu os antigos “pratos salgados”. Não há um restaurante que não tenha um, dois ou mais pratos onde algum toque de “doce” foi introduzido: molhos à base de reduções de frutas, mel, caramelo, redução de vinho do porto, redução de balsâmico, garapa, melaço, etc.
Semana passada, jantei duas vezes com Massimo Montanari. A impressão rápida que lhe ficou das refeições de uma semana que passou no Brasil: não se come pão e tudo é muito doce. Até as massas são apresentadas com molhos doces (se referia ao açúcar no molho de tomate...).
Acho muito bom que a fronteira entre o principal e as sobremesas tenha sido derrubada e sal e açúcar possam passear por toda a refeição. Mas é preciso muito mais sabedoria para propor cardápios sem essa fronteira. Afinal, a fronteira se devia à possibilidade de organizar uma certa intelecção da refeição, marcar um ritmo e uma seqüência. Não é bom cair num caminho regressivo.
Não podemos simplesmente voltar aos séculos XVI e XVII europeus. O tratado de culinária de Messisbugo, da Itália do século XVI, trazia 69% das receitas com mel, açúcar e outros ingredientes doces. Nos cardápios principescos do século XVII, 45% dos pratos de carnes e peixes incluíam o açúcar. Os excessos barrocos é que impulsionaram a “nova cozinha” que segregou o açúcar numa culminação da refeição, seja na forma de preparados doces ou na naturalidade das frutas. Valorizou o doce ao confiná-lo.
Mesmo uma receita tão antiga e tradicional como o pato com laranja revela uma ciência no uso do açúcar que, atualmente, se perdeu. O molho do pato com laranja é tríplice: o molho da carne, a redução da laranja e o caramelo com vinagre (agrume). A redução da laranja e o caramelo ácido são como cores numa palheta que ajudam a matizar o molho da carne. Temos o agridoce e o amargo ajudando o suco da carne a se expressar melhor. A gororoba doce que predominou é uma degeneração da boa composição (e cheguei a ver até cereja ao maraschino como decoração. Horrorshow!!).
Mas a filosofia "pato-com-laranja” se expandiu pelas carnes nos nossos restaurantes de feição moderna. Não raro temos carne de porco lambida por algum caramelo, coulis de manga, maracujá, xarope de jabuticaba, contornando carnes, peixes e aves. Sem falar das cebolas caramelizadas, das berries, das pêras e maçãs, bem como das ameixas secas ou mesmo da mandioquinha em purê. Quando chegamos à sobremesa, já não sabemos o que estamos fazendo ali. E eis que vem um chocolate com flor de sal e, de novo, voltamos ao começo.
Não é raro se procurar amenizar tudo isso através da associação com a pimenta ou o gengibre, criando uma marcação ou andadura nova. Mas o picante, sabemos, não é um sabor e, sim, uma sensação táctil bucal. Ele não atenua o doce, apenas faz com que se expresse em outra chave; como as claves de sol, de fá ou de dó condicionam as notas musicais.
Em suma: muitos chefs acham que a queda da barreira tornou a criatividade mais fácil. Engano. Tornou muito mais difícil, simplesmente porque, do ponto de vista combinatório, quanto maior o repertório culinário mais difícil encontrar a própria expressão ou a harmonia buscada. O doce tornou-se um ruído. É preciso fazê-lo música.
05/11/2009
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2 comentários:
Bela reflexão!
Mas será que a culpa disso não é de um publico menos esclarecido (a grande maioria na verdade)que aplaude incentiva e alimenta os egos criativos e muitas vezes equivocados de tantos chefs por aí?
Botões,
não vejo culpa. Vejo afinidades eletivas de parte a parte. Já foi moda, já foi "chic", o pato com laranja.Uns e outros se esmeravam para fazer/comer o melhor.
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