:continuando, o sertão não se dispõe facilmente para ninguém. Ele se estende da pradaria gaúcha às franjas da Amazônia, no Piauí e Maranhão. Antes de ser um lugar determinado, é uma palavra ampla e generosa. Os hábitos culinários variam nele, segundo a disponibilidade de cada ecossistema. Mesmo o hábito de comer carne de boi – sendo a pecuária o seu elemento comum - varia nele.
Variado e amplo, precisa ser recortado quando falamos dele, onde os pastos carecem de cerco. Ana Rita Dantas Suassuna fala só do sertão de Pernambuco. Lá se come preferencialmente carneiro, cabrito, galinha e galinha d´angola. Boi é também capital, não comida apenas comida. Uma ou outra carne de sol, para os mais recursados.
Mas todos os animais domésticos vêm depois das caças – modo de vida dos mais pobres que o Ibama cuidou de estragar. Os tatus, é claro, ainda se come. São abundantes. Sempre é possível tirar um da toca quando o Ibama não vê. Marrecos, patos, paturis, cagado-jabuti, rã, mocó já rareiam. As pombas (arribação) são muitas e não escapam. Delas, faz-se canja, por exemplo.
Uma das melhores partes do livro é a descrição do que se faz com a galinha: o deixá-la “limpando” 10 a 15 dias, só comendo milho; o modo que se mata e sapeca (e não se lava mais, como fazem por aqui!); como se lava as tripas a fritar para comer; o uso da gordura para temperar o arroz, xerém, feijão ou fazer farofa.
Não pense que essas coisas são adaptáveis para o mundo urbano. Para começar, galinha aqui não tem pena, pescoço, pés ou tripas. “Pé de galinha” – pode perguntar a qualquer menina em qualquer shopping – é o nome de um tipo de ruga. A gordura é um nojo (desculpe-me Neide Rigo) quando derretida. Sim, é outro animal. Não se engane pelas aparências galináceas. Já as pessoas que gostam de “resgatar” coisas deviam discutir esses assuntos gravíssimos com a Sadia, a Perdigão, a Seara, a Cori e tantas mais.
Galinha “de capoeira” é uma instituição sertaneja. Como ela, os ovinos e caprinos também são criados soltos.
O porco fornece, além da carne, a banha. Ela é a gordura de fritura, a gordura que entra na composição de vários pratos, inclusive sobremesas. O progresso a substituiu por manteiga e margarina, mas no sertão ela ainda apresenta uma permanência extraordinária.
Os interiores de porcos, cabras e carneiros também resultam em pratos apreciados. Partes como a cabeça, o espinhaço, dão frutos notáveis em sabor. Línguas são aproveitadas no preparo do feijão. Quase nada se perde. Há diferenças de renda também: pobres comem animais em idade de descarte, gente de mais posses os borreguinhos.
E lendo comparativamente um livro de culinária tradicional portuguesa e esse livro de Ana Rita Dantas Suassuna vê-se o quanto ficamos próximos do Portugal arcaico ou do Portugal moderno rural.
É decididamente uma outra culinária, se comparada ao resto do Brasil. Minas, tão apreciada, é um pedaço de sertão. Uma culinária cujas remissões ibéricas deveriam nos estimular a prestar mais atenção em sua riqueza e variedade. Que não haja uma “história do sertão” como Capistrano de Abreu prometeu escrever (e não cumpriu), se entende; que não haja uma maior curiosidade sobre a sua cozinha é coisa que só se explica por estranhamento, preguiça e preconceito. Como registrei outro dia, foi Gilberto Freire a estigmatizar o sertão: “áreas caracterizadas por uma cozinha ainda agreste”. Nada disso!
(Segue nas próximas postagens)
31/08/2010
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1 comentários:
Lembrei agora da galinha "pé duro", muito apreciada nos sertões cearenses. Como a galinha "de capoeira", citada no post, ela é criada solta e não come ração, apenas milho e resto de comida. Com ela, especialmente nos dias de festa, faz-se um prato chamado "galinha cabidela", um tipo de cozido no qual o sangue da própria ave entra no preparo, dando ao molho uma textura e um sabor inigualáveis. Como se pode imaginar, é um prato bem trabalhoso de se fazer (uma vez que seu preparo inclui matar e despenar a galinha para recolher o sangue) e, talvez por isso mesmo, é também um tanto raro de se encontrar atualmente.
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