30/08/2010

Ferran Adria: registro histórico

Em 2006, de passagem por Barcelona, Cristiana Couto, Joana Munné e eu estivemos no taller de Adria, onde se desenvolveu a conversação que trascrevo abaixo, em parte inédita (só um trecho foi publicado pela Revista Bravo!.).
Adria tinha sido recém-indicado para a mostra Documenta Kassel 2007.


P – Ferran, o que está acontecendo no mundo da gastronomia?
Adrià – A gastronomia tem uma importância imensa hoje, exagerada. Acho que a humanidade resolveu o problema da fome e o problema hoje é o inverso, pois se come demasiado. A gastronomia é a tentativa de se descobrir, no meio de tudo isso, onde está efetivamente o prazer. É uma reflexão sobre o lúdico, não sobre o excesso. Mas esta é uma questão que só se coloca a partir da superação da fome, ela não é possível nos países onde ainda há fome.

Pergunta - Porque essas coisas importantes se passam na Espanha de hoje? As espumas que você criou são copiadas no mundo todo...

Adrià – A Espanha passou por uma grande mudança na sua cozinha. As espumas são a coisa menos importante. No meu trabalho, a parte mais importante foi a “mediterranização” da cozinha espanhola, entre 1987 e 1993. Isso poucos compreenderam fora da Europa. O que fiz, foi enraizar a nova cozinha nas culinárias mediterrâneas, trabalhar a partir delas. Fazíamos também sorvetes salgados, que muita gente hoje faz... A técnica das sobremesas salgadas influenciou o mundo inteiro. Além disso, em alta gastronomia, já se aceita trabalhar com Nitrogênio líquido. São linhas de trabalho que repercutiram, além das espumas. A cozinha não é produto de luxo. Hoje se quer magia, emoção. A intenção da alta cozinha é criar emoção e, para isso, manter uma linha de investigação é fundamental. Mas onde há criatividade, sempre há excessos.

P – Se fala muito na necessidade de reescrever “A Fisiologia do Gosto”, de Brillat-Savarin (1755-1823), já que a gastronomia e o conhecimento sobre o paladar mudaram. No elogio fúnebre do escritor espanhol Manuel Vázquez Montalbán [El Pais,20/10/2003], você afirmou que ele era a pessoa talhada para escrever a nova fisiologia do gosto. Por que?
Adrià - Porque Montalbán era um homem cordial, um dos poucos intelectuais da cozinha, e muito pragmático. Para se escrever a nova fisiologia do gosto é preciso ser muito pragmático. E quando se conversava com ele era possível entrar em detalhes técnicos, pois também sabia cozinhar.

P – E qual você acha que é a sua contribuição para essa provável “nova fisiologia do gosto”?
Adrià – Veja, nós temos aqui no taller quatro áreas de investigação. Em primeiro lugar, a investigação dos melhores produtos e de produtos novos. Em segundo lugar, a busca de novas tecnologias. Em terceiro, as pesquisas temáticas. Por fim uma área “mais louca”, de experimentação livre, de invenção.Quando a equipe vai ao El Bulli se criam os pratos. Aqui é um trabalho mais frio, racional, de pesquisa. Ir a El Bulli é o momento da magia. Os cozinheiros sabem muito pouco de química, para isto estão aqui os químicos, que agregam valor à gastronomia.
Este é o nosso sistema criativo. A arte é mais a parte criativa, quando se faz o primeiro prato; é um trabalho de mais sensibilidade. Agora, eu não sei que resultado isso tudo vai deixar para a história da gastronomia.
Quem pode saber? Fala-se muito do nosso trabalho, sem conhecimento de causa. Agora, estou deixando tudo documentado. Vê aqueles fichários? [aponta para uma estante repleta] São cerca de seis mil páginas onde todos os experimentos estão documentados, passo a passo. Estávamos fartos de que falassem das coisas que fazemos sem conhecimento... Agora está tudo documentado para quem quiser analisar...antropólogos, sociólogos, químicos, jornalistas. A investigação é fundamental para a transformação do gosto. Na pesquisa dos melhores produtos, por exemplo, tome-se o tomate. O fator cultural, genético, é fundamental para o seu gosto e para se saber tudo sobre tomates seria necessária uma vida inteira de pesquisas.
Outra coisa importante é que estamos aliando a pesquisa com a educação e a nutrição. Veja aquela planta [mostra uma planta de arquitetura]. É a planta baixa dos prédios da Fundação Alicia, da qual sou presidente. A proposta da fundação é unir pesquisa, educação e alimentação. Ela estará funcionando já o ano que vem. Além disso, estou fazendo um livro com um cardiologista, médico do ex-presidente Clinton, que sairá também em 2007. Este livro tem um ponto de vista pragmático que consiste em tentar mudar a realidade. Por exemplo, os aditivos não são sempre maus. Hoje, 80% deles são naturais, mas há muito preconceito e mudar isso é muito difícil. Queremos passar para as escolas o fato de que se alimentar saudavelmente é de suma importância. Uma das prioridades das pessoas deveria ser a saúde.
Quanto aos produtos, atualmente ando interessado em algas e em proteína de soja, com o que se pode fazer muitas coisas. Em termos de técnica, na “esferificação” com alginato [sal emulsionante e coagulante, utilizado na indústria], que pode ser utilizada em quase todas as elaborações.

Pergunta - O que pensa sobre o trabalho de sistematização de Hervé This?
Adrià - O tema “gastronomia molecular” é uma mentira! Nunca vendi minha cozinha como se fosse molecular e me atribuem esse rótulo, confundindo as pessoas. Trabalhamos durante muito tempo, realizando um trabalho polêmico e, depois, saem livros e nos chamam assim! A cozinha é um todo, e não podemos esquecer que o momento sócio-econômico também é fundamental para o atual estado da gastronomia espanhola.

P – Nos diga como está encarando este convite da Documenta de Kassel.
Veja, o que é a arte? Os cozinheiros sempre encararam a gastronomia como arte, como criação, como momento de sensibilidade. Mas nunca houve um reconhecimento como este que a Documenta proporciona. Assim, em 2007, estaremos lá. E irá se abrir o debate sobre a relação entre cozinha e arte. Acredito que esta é uma grande mudança na gastronomia, pois se reconhece um componente que não existia antes no universo do gosto - a investigação na cozinha e o conceito artístico no comer.
“Arte” é muito complicada, pois nem todos têm a mesma visão. E Documenta é mais do que uma manifestação artística porque, do meu ponto de vista, já não sei bem o que é a arte de hoje em dia. Por exemplo, a obra de arte é cara. Mas o que seria a arte? A primeira vez que você faz um lustre, uma porta, um quadro que é reproduzido? Litografia é arte? Para mim, não é. Acho que hoje a arte se faz a partir daquele que a recebe.

P – Então, para você, o critério que decide no campo artístico é o da subjetividade?
Adrià - Claro, arte tem muito a ver também com ruptura, com influências... mas, para mim, é o critério subjetivo que prevalece: o se emocionar. Por exemplo, por que os melhores gourmets são do Brasil? Não sei dizer... Mas todos os que vêm ao meu restaurante têm um modo diferente de perceber o que fazemos aqui. É como jogar futebol, um dom. Outro dia, havia um brasileiro chorando à mesa do El Bulli. A sensibilidade das pessoas não é a mesma, cada um tem a sua.
Pergunta – E o que você está pensando em apresentar na Documenta?
Adrià – O objetivo é demonstrar porque a cozinha pode ser arte. Ao me verem trabalhar, verão que é como se trabalha no mundo da arte. Minha presença lá é a polêmica do ano, todos os artistas querem me cortar a garganta...
Para mim, se não há criatividade no mais alto nível, não há arte. Agora, quem irá opinar sobre o meu trabalho? Um crítico de arte? Um analista da cozinha é muito difícil, pois ele tem que trabalhar dois anos em uma cozinha para entender o que se passa nela.

P – Indo para outro lado, você já disse mais de uma vez que vê o futuro da gastronomia na China e no Brasil. Pode explicar essa sua opinião?
Adrià - Filosofia, técnicas e conceitos são os parâmetros que importam na cozinha. No Japão há uma filosofia que leva em conta saúde e alimentação. Da China não conhecemos quase nada. A maneira de se fazer massa, por exemplo, é completamente diferente da italiana e nos livros de Escoffier [o inovador chefe Auguste Escoffier, 1846-1935] não existe uma linha sobre a cozinha chinesa. Na China importam duas coisas: cozinha e sexo. A cozinha tradicional chinesa é a mais grandiosa do mundo. As técnicas e conceitos são diferentes em cada lugar do mundo; então a China é um lugar de onde pode vir muita novidade.
Em relação ao Brasil, eu me refiro à Amazônia. Quando os seus produtos forem explorados, haverá um impacto tão grande quanto no período das grandes navegações, da descoberta das Américas. Se houvesse um modelo sócio-econômico que arrumasse as desigualdades, tudo seria muito mais fácil. A Espanha funciona hoje em dia, mas sofremos uma ditadura de quarenta anos que paralisou o país.
O Brasil é um grande mercado a explorar. Há frutas e verduras silvestres, e é de grande importância que elas possam ser cultivadas. A sensação “elétrica” do jambu, por exemplo, vem da Amazônia... mas foram necessários cinco séculos para essa sensação ser descoberta e ingressar na gastronomia. E é preciso produção continuada. Não há no Brasil empresas especializadas que se dediquem à investigação e comercialização das frutas da Amazônia. Creio que um novo caminho para o Brasil é a criatividade, que no país é muito original, e é através dela que vocês poderão estar na frente. É preciso mudar o “chip” em direção ao prazer. Há cinco anos não se conhecia na Europa nenhum cozinheiro brasileiro...

P – Não só você, mas vários chefes modernos falam muito em “filosofia” na culinária. Quais filósofos você leu ou prefere?
Adrià - Não leio livros de filosofia. Penso até que, algum dia, vou dar uma parada no que faço para ler, mas não leio. Meus filósofos são os jornalistas. A influência que tem a informação que eles passam e a maneira como são passadas.

P - Há uma sensação muito típica, como um acolhimento, quando estamos diante de uma paella, da cozinha do mar, da cozinha da nossa tradição. E como é, em seu restaurante, estar diante de um prato? É uma sensação de abismo, de faltar o chão?
Adrià – Exatamente. No meu restaurante ninguém sabe o que vai encontrar, não há referências. Se você nunca comeu tucupi, por exemplo, fica abismado, mas 80% da Espanha não iria gostar do tucupi. E não há diferença entre um tucupi, que é a cultura de um povo, e a cultura do meu restaurante. Porque a intenção do El Bulli é provocar novos registros, totalmente desconhecidos. Uma das melhores definições do El Bulli é, portanto, estar em um país que você não conhece. Se você perguntar às pessoas o que é o jambu, ninguém conhece. Em filosofia de cozinha, não sabemos nada, só sabemos de produtos. Eu sou bom em identificar bons produtos porque tenho referências e sensibilidade. Os sabores são culturais. Veja o caso do amargo. A cerveja, por exemplo, é extremamente amarga, mas as pessoas estão acostumadas a ela.
No El Bulli, então, o que conta é a sensibilidade. A cozinha é um tema muito complexo, onde participam todos os sentidos. Uma manga picada miúda não é o mesmo que um suco de manga. Podemos ficar dez anos fazendo estudos sobre a manga.

P – Portanto, para você, a riqueza e a diversidade não são tão importantes, pois podemos nos concentrar, em termos minimalistas, numa manga...
Adrià – Exatamente. Em termos minimalistas. Mas entre o minimalismo e empirismo há uma grande distância... O fundamental é a criatividade e a sensibilidade que orienta o trabalho.

2 comentários:

Mamede disse...

Gostei da entrevista, admiro imensamente o trabalho do Adrià mas tem certas coisas que passaram a me incomodar nos últimos anos na gastronomia, essa idéia de filosofia, arte, cultura, física, química e Amazonia..explico, é comum hoje, principalmente entre os estudantes de gastronomia, usarem esses termos sem se preocuparem em entender do que eles estão falando, sem entender aquele conceito. Comida é cultura? Sim. Porque? .... O que é cultura? Como encaixar esse conceito dentro da gastronomia e não somente importar e recortar esse conceito dentro de outras áreas de conhecimento, mas se pelo menos esse recorte fosse feito já seria válido. É difícil discutir sobre gastronomia sem sair do superficial, os termos utilizados deixam a conversa cheia de empáfia e pouco passível de uma discussão que vá além do que os grandes falam em entrevistas. Experimente criticar Adrià, Atala... parece desrespeito, mas se eles são capazes de provocar questionamentos positivos e negativos não é porque o trabalho deles conseguiu ir além do óbvio, conseguiu se tornar referência? Finalizo com a questão da Amazonia... existe vida além dela.. existe por exemplo o Cerrado, ás vezes me surpreendo com a propagando que é feita por exemplo com o murici fruta da amazonia desconhecida e exótica (veja, 2009) que apodrece em fevereiro no solo de Goiás... admiro tanto o tabalho do Adrià que sinto falta de outros diálogos que nos tirem desse marasmo e que provoquem discussões além de espumas...

Unknown disse...

dória,
que bom ver "ouvir" essa conversa de novo... um beijo
cris couto

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