26/08/2010

O vinho de uma perspectiva materialista: contra enochatos

É chegada a hora dos enólogos, dos sommeliers e dos enochatos de todas as castas darem um tempo. Não a nós, mas a si próprios. É que, finalmente, saiu uma obra de leitura obrigatória para eles: a tradução do Le goût du vin, de Émile Peunaud (O gosto do vinho, São Paulo, Martins Fontes, 2010).

Um dos estudos mais interessantes sobre a história da enologia é o de Marion Demossier, que foca o discurso enológico francês moderno (Marion Demossier, « Le discours œnologique contemporain :région contre nation au XXIe siècle », in Françoise Hache-Bissette e Denis Saillard, Gastronomie et identité culturelle française : discours et représentations. XIXe-XXI siècles, Paris, Nouveau Monde éditions, 2009).

Ela parte do “quase-silêncio” intelectual sobre o vinho na literatura do século XIX, onde ele figura sempre como um acompanhamento ou complemento do comer, tornando-o, assim, tributário da literatura gastronômica mais geral até que, por volta de 1970, com o surgimento da Revue dês Vins de France, os dois discursos se dissociam.

Até o surgimento do livro de Peynaud, o vinho estava subsumido nos estudos de alcoolização, sem “dignidade” como tema cultural. Mas a ruptura do discurso gastronômico a partir da “invenção” da enologia se dá através dos avanços técnicos da química. Então, esse discurso do vinho se estabelece em novo terreno e, depois, no terreno da medicina.

Até o surgimento da obra de Peynaud o discurso do vinho será também regionalizado, faltando-lhe a homogeneidade e unicidade acerca da percepção e análise. O que que se escrevia sobre degustação de vinhos era restrito a “superlativos, exclamações, hipérboles e florilégios”, dando a impressão de que a cultura do vinho só poderia ser elitista, contraditória e heterogênea.

Mas Peynaud introduz, finalmente, a abordagem sensorial e abre a possibilidade da intelectualização que faz emergir o moderno discurso enológico francês. Um discurso que aposta na tradição, no vínculo com o lugar, na distinção e na estética, na autenticidade, no artesanato e na região.

O livro de Peynaud não é difícil de ler. Só exige paciência, pois é cheio de meandros muito ricos e proveitosos para quem se ocupe dessa especialidade.
Sua proposta é generosa: promover “o encontro do humano com o vinho” através do exercício controlado da degustação.

Ele sabe que todo mundo é apto a julgar vinhos, e que o treino – especialmente a longa experimentação – habilita o sujeito a melhor conhecer esse objeto, ao menos para discorrer sobre ele para terceiros. Sim, porque ele diferencia a degustação para si da degustação para terceiros, e subdivide essa em várias categorias e finalidades: degustação técnica, comercial, etc.

Muito humildemente ele localiza a sua obra ao lado de outras que surgiram a partir de 1949 e que constituem o conhecimento avançado sobre o tema. Livros que discorrem sobre dados anatômicos e fisiológicos, sobre métodos, sobre modelos estatísticos de teste e assim por diante.

Um dos capítulos mais interessantes é aquele sobre “As palavras do vinho”. Nele, analisa a linguagem dos degustadores e a semântica da degustação. “O cronista que fala de vinhos ‘engraçados, divertidos, elegantes, espirituosos, impactantes, maliciosos’ (e seria fácil aumentar essa lista) chega ao cúmulo da insignificância e ele próprio merece alguns desses adjetivos”. É o capítulo que analisa o que nos incomoda: a verborragia.

E como faz essa análise? A partir das técnicas de análise de texto, especialmente da lingüística de corpus, quando aparece o abuso de certos termos – como “frutas vermelhas e negras” – e se percebe exemplarmente que, num universo de 18.000 palavras foi possível identificar 1.371 “formas” das quais nove são citadas mais de 100 vezes, isto é, só 0,66%. As demais são palavras pouco informativas como: nariz, boca, vinho, aroma, elegante, bela, fruta, etc...

“Essas observações de especialistas da semântica podem surpreender, desamparar o degustador habitual; elas têm o grande mérito de sensibilizá-lo para o uso correto de um bom vocabulário, claro, útil e compreensível para todos”.

Enfim, fica claro que o enochato cria uma ficção no terreno da linguagem. é um pseudo-poeta que constrói um vinho literário. Por isso é um chato para quem simplesmente quer se informar sobre escolhas a fazer. Ele não ajuda, e atrapalha.

Mas o livro de Peynaud é rico para a degustação em geral, não só do vinho. Ele indica sobretudo o caminho do método. E sua análise é arrasadora no que se refere a um dos pilares do discurso poético sobre o vinho, como é o mito do terroir. Ao utilizarmos esse conceito, “esquecemos o essencial, ou seja, a intervenção humana que cultiva, beneficia, fertiliza e colhe a cepa certa, o porta-enxerto certo. Sem exagero, há quase tantos terroirs vitícolas como parcelas de vinhas, e a maioria dos vinhos provém de vários setores, com exceção de alguns microvinhedos. Não há nada menos natural, no sentido de espontâneo, do que um terroir vinícola”.

Enfim e por fim, um ponto de vista materialista sobre o vinho.

1 comentários:

Fátima Farias disse...

Eu já tinha desistido de livros sobre vinhos. Não gosto do romantismo exagerado e de certo pedantismo que permeia as observações de grande parte dos autores (especialistas) que abordaram o assunto.
Mas acho que agora estou de esperanças renovadas! ;)

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