Acabo de ler Para onde foram os chefs?, de François Simon (Senac-SP, 2010). Ele é um crítico temido por não ter papas na língua. E esse é um livrinho de desabafos. Muito bom para que gosta de analisar o papel da crítica diante da cena gastronômica.
Sua tese é curiosa: a gastronomia conseguiu provar que “podia se auto destruir” (p. 88). Como ela conseguiu? De várias maneiras, sendo as principais: o chef se tornou um personagem midiático; ele nunca está à frente do seu restaurante, pois virou um globe trotter, com interesses em várias partes do mundo; passou a adotar largamente a prática da imitação, etc.
Simon acha que a desgraça começou com Paul Bocuse, o primeiro midiático itinerante. E embora ele abra uma exceção para o trabalho de Adrià, entende que seu impacto sobre a culinária francesa foi arrasador e nefasto, pois todo mundo passou a copiá-lo. Da nova tendência, na França, Simon só salva Pierre Gagnaire. Hervé This? Ah, é um “engenheiro” esperto...
Simon, como crítico, se coloca como o antípoda intelectual de Rafael Garcia Santos: ele quer a permanência onde Garcia Santos vê com entusiasmo a mudança.
Mas há passagens muito lúcidas no livro. A crítica ao papel da imprensa, muitas vezes reduzida pelos próprios chefs à condição de mais um “fornecedor” do restaurante; a identificação daquilo que já não agüentamos mais (garçons em recitações intermináveis, sommeliers cochichando no seu ouvido, entradinhas quase pornográficas, etc etc); a elitização via preços; a escravidão a que são submetidos os estagiários nos restaurantes, e assim por diante.
Simon deposita suas esperanças na retomada do modelo dos velhos bistrôs e no discurso moderno do Slow Food; ou seja, um passo atrás no caminho das inovações. Se Garcia Santos faz o elogio incondicional do novo, do experimental, Simon faz do que é sólido e bem feito, mesmo se convencional.
Ele parece nos dizer: olha, é melhor ser reacionário do que arriscar. E estamos exaustos dos riscos que levam a nada. Em vez de tentativa e erro, apostemos no seguro. A gastronomia se tornou “uma vaca cansada que vê os trens passar” [sic] (pág. 27).
Não sei se posso concordar com isso. E não consigo distinguir com clareza se Simon gostaria de salvar os chefs do atoleiro em que se meteram ou um púbico em nome do qual parece falar e que já não quer tanta novidade. Um público que, sugere em algumas passagens, já não freqüenta esses restaurantes como antes. Então fica a impressão de que quer mesmo é salvar os chefs ou uma abstrata “gastronomia”.
O certo é que existe um viés nacionalista em sua fala. Ele fala da França e, em especial, do cenário parisiense. Mas, afinal de contas, de uma perspectiva cosmopolita, o que nos importa se a deusa da criatividade abandonou os chefs franceses em busca de novas moradas, em outros países? Por que teríamos que nos comover com a mediocrização da cultura gastronômica na França? Talvez esta seja apenas a dor de quem percebe que o mundo ficou multifocal, não existindo mais uma capital gastronômica como no passado.
Mas Simon tem consciência de que a crise é da “alta cozinha” na França. A “alta cozinha”, além de um corpus de receitas de natureza histórica, é uma prática de criação e inovação. Ela é o domínio dos chamados “grandes chefs” e só se mantém através de renovações periódicas bem sucedidas. Diferentemente da “cozinha burguesa”, que é o domínio dos bistrôs, onde o importante é sempre reconhecer uma boa dose de fidelidade à tradição.
Por isso, penso que não se pode dizer que o futuro da gastronomia se apóie no atual dinamismo dos bistrôs, como Simon sugere. Seria renunciar à alta cozinha. É preciso refletir sobre os rumos da alta gastronomia, pensar em como sairá da crise atual que Simon, com acuidade, aponta. Talvez não haja saída mesmo, e estamos vivendo o seu melancólico fim...
Em segundo lugar, essa cozinha é imitada no exterior. Sempre foi assim. Desde Carême – que, aliás, ajudou a difundi-la como estratégia política, aliada à diplomacia, quando foi trabalhar na corte do czar Alexandre II. Deve-se a essa influência muitos dos pratos renovados da culinária russa, como o coulibiac. Depois, na hotelaria, se copiou mundialmente o modelo de Auguste Escoffier. Coisas assim é que levaram Elisabeth David a falar de uma cozinha francesa fora da França, ou “la cuisine à la française”.
Pois bem, os grandes chefs-peregrinos, saibam ou não, trabalham para essa cozinha; não mais exclusivamente para a haute cuisine francesa. E isso é tão importante para a política cultural francesa! Mais do que hoje faz por ela a Aliance Française. Não se fala mais francês, mas ainda se come “à francesa” no mundo todo.
E a curiosidade dos asiáticos, por exemplo, é perfeitamente compreensível. Ao tempo em que Paris era a capital do século 19 eles eram... colônias. Agora vão à forra, pois o dinheiro está em suas mãos. Querem o melhor, ou o que pensam que é o melhor. Talvez essa cozinha viajante não seja mais tão boa como Simon pensa que deveria ser para o mercado interno.
Mas o que mais me intriga é o seu horror à imitação ou cópia no domínio da alta cozinha. Em Comer é um sentimento (Senac-SP, 2006) ele já havia dito que a cozinha muda lentamente porque muito se copia, e sugeria ao leitor ser inventivo. Agora, sua implicância com a cópia parece aumentar. Mas, afinal de contas, como ele pensa que a cultura gastronômica possa se renovar, senão através da imitação? Deve-se, aliás, a um francês, fundador da sociologia – Gabriel Tarde – a teoria sobre as “leis da imitação”[ Les Lois de l'Imitation, 1890] e a difusão das inovações. A imitação não é apenas permanência, é um movimento dinâmico da sociedade.
Este tema foi retomado modernamente pela “memética”, que se pretende instituir como uma ciência da comunicação. Eu mesmo (A culinária materialista) fiz um exercício de aplicação dessa teoria à difusão das receitas.
O fato é que a gastronomia tornou-se um tema forte das novas mídias e sua forma de difusão virou espetacular: programas de TV; sites e blogs; aulas e workshops em congressos; lançamentos de produtos com a marca dos chefs e assim por diante. Enfim, tornaram-se vendedores de uma nova cultura alimentar, gostemos ou não dela.
A volta ao artesanato e ao conforto dos bistrôs – coisas diferentes, aliás - pode ser algo a se prescrever àqueles que se cansaram de tanto espetáculo. Mas isso só por um tempo: até que a haute cuisine tome fôlego e retorne triunfante. Ou, de fato, vivemos o fim desse modo burguês de comer - o “principado barroco” como Simon diz? Sem dúvida ele nos deve o prosseguimento do seu raciocínio sempre instigante.
24/08/2010
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3 comentários:
Ola Doria!Descobri seu blog hoje e como estou morando aqui em Londres fiquei muito feliz de poder encontrar criticas e informacoes tao interessantes como esse post de hoje. Parabens! Abracos, Fabiana
Fabiana, muito obrigado pelas palavras gentís.
Excelente postagem! Comentários ácidos e pertinentes. Vamos nos debruçar sobre os livros e sobre os ingredientes. E uma RCP na haute cuisine rapidamente, pois já se ouve seus estertores... (ah, o ego humano...)
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