Para Savarin, a fritura é a modalidade de cozimento num líquido que atinge mais alta temperatura do que a água: ”no primeiro caso, a água dissolve e absorve os sucos interiores dos alimentos que nele são mergulhados, no segundo, os sucos se conservam, porque o óleo é incapaz de dissolvê-los; e se esses corpos se dessecam, é que a continuação do calor termina por vaporizar suas partes úmidas”. Assim, fritar (“a ação de fazer ferver no óleo ou na gordura corpos destinados a serem comidos”) é o procedimento que forma, por calor, “uma espécie de envoltório que contém o objeto, impede a gordura de penetrá-lo e concentra os sucos, que sofrem assim uma cocção interior que dá ao alimento todo o gosto que ele é capaz de ter”.
Quanto aos óleos utilizados, a única restrição que Savarin faz é ao azeite de oliva que, muito aquecido, dá um gosto empireumático e desagradável ao produto. A lição sobre a fritura deriva, assim como tantas outras lições da Fisiologia, “das mais altas abstrações da ciência”. Em resumo, a fritura de Savarin: a) concentra os sucos e o gosto; b) encapsula-os no alimento.
Essa teoria da fritura tornou-se dominante na gastronomia ocidental. Mas no período da nouvelle cuisine Bocuse mostrou uma atenção nova para o óleo da fritura, visto que, além de ferramenta de fritura, ele também tem uma natureza sápida a ser considerada, nem sempre negativa como o óleo de oliva da fritura de Savarin. Na classificação que Bocuse apresenta, ele nos diz que o óleo ideal para fritura é o de “amendoim rigorosamente neutro”; já as gorduras animais atingem graus caloríficos altos, embora um tanto menos elevados do que os óleos vegetais. “A gordura do rim do boi é a mais recomendável das gorduras animais. A de vitela é mais fina, mas não resiste a altas temperaturas. A de carneiro é positivamente má e desaconselhável. A de porco, a rigor, é empregada, mas é melhor reservá-la para diversas operações culinárias em que ela entra como condimento”. A manteiga queima a partir de 130ºC e não dá boa fritura; mas óleo, azeite, manteiga e banha são, como categoria geral, “condimentos gordurosos” .
Ora, está claro que a fritura de Bocuse, exceto no amendoim - “rigorosamente neutro” - acrescenta sabor, o que o faz reclassificá-las como “condimento”. Esta a explicação para a “sobrevivência” do confit em banha de porco quando já não é mais necessário o uso dessa técnica para a conservação. É notável também que todos os chefs trabalham, em relação à manteiga para fritura, nos marcos dos seus usos ocidentais, esquecendo que o ghee indiano é uma manteiga apropriada para a fritura, suportando temperaturas superiores a 130ºC sem perder a condição de acrescentar sabor. No ocidente o ghee é chamado “manteiga clarificada” mas o seu uso não é similar ao indiano. Mais tarde veremos surgir, como mostra Hervé This, técnicas de fritura em dois tempos, onde o alimento absorve o menos possível de gordura, agora como um tour de main de tipo “científico” e orientado por uma idéia de sanidade.
Ora, sob o efeito do calor e através do contacto com os alimentos e o ar, as moléculas do óleo de fritura se modificam e podem nascer compostos de oxidação potencialmente tóxicos, às vezes concerígenos. Esse novo tipo de consideração sobre os óleos de fritura acaba por determinar outras formas de classificação dessa matéria-prima a partir da sua degradação no uso. O critério hoje aceito determina que os compostos polares – principal medida de toxidade - de um óleo após o aquecimento (5 horas a 180ºC) devem ficar em níveis inferiores a 25%, o que nos fornece uma tabela como a seguinte :
Gorduras saturadas (%)
Amendoim - 18
Colza - 7
Milho - 14
Noz - 9
Oliva - 15
Palma - 50
Semente de uva - 11
Soja - 15
Girasol - 13
Como se vê, o dendê,que é uma palma, é o pior.
A degradação do óleo e os riscos que oferece à saúde são funções também da temperatura excessiva (superiores a 200º C, por exemplo) e da presença de elementos carbonizados (utilização múltipla). Apesar disso, a engenharia dos óleos de fritura se concentram na “neutralidade” e no baixo teor de ácidos graxos, ou gorduras saturadas, favorecendo o aparecimento de produtos como o recente “canola” (que é uma sigla, CANadian Oil Low Acid), feito a partir de uma variedade selecionada da colza (Brassica napus), também produzida de forma transgênica. Mas o marketing desse óleo é tão bem feito que pouca gente sabe que seu nome é uma sigla, referindo-se a ele como “óleo de canola”.
Por outro lado, o triunfo desse tipo de matéria-prima significou o abandono quase total dos óleos aromatizantes e saporificantes. Dos óleos brasileiros utilizados há 60 anos, só o dendê persiste (embora seja o óleo de palma o menos recomendável), tendo-se abandonado até o de umirium, que Dona Benta reputava “superior em gosto e aroma ao melhor azeite de oliva”:
“temos o [óleo] da castanha-do-pará, que dá de 60 a 70% de óleo superior; o da sapucaia, que produz óleo finíssimo e muito saboroso; o indaiaçu, abundante em todo o Estado de Goiás; o batiputá, coqueiro de cujos frutos se extrai um azeite saborosíssimo e já largamente usado na Paraíba e no Rio Grande do Norte; o umirium, planta que produz um óleo aromático, é o mais agradável e o mais odorífero de todos os óleos vegetais, e muito comum no Amazonas e no Pará; o dendê, de origem africana, indispensável para o preparo de certos pratos típicos de nossa cozinha; o cumaru, cujo óleo já é produto de larga exportação”.
(Excerto do meu livro A culinária materialista, São Paulo, Senac, 2009).
O exemplo do óleo de fritura é apenas um dentre tantos desenvolvimentos funcionais de matérias-primas culinárias.
19/08/2010
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1 comentários:
Será que eu entendi direito? Quer dizer que o azeite de Oliva tem o mesmo nível de gordura saturada do óleo de Soja? Vivendo e aprendendo...
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