21/12/2010

A culinária como common


Uma das coisas mais interessantes em culinária é a ilusão da autoria de uma receita.


A dimensão prática se sobrepõe obviamente à intelectual, dando margem a que se pense: “minha receita” quando se meteu a mão na massa.

Mas, seja qual for a sua receita ela será, muito provavelmente, uma variação dentro de uma espécie de receitas assemelhadas, de sorte que o pequeno desvio que você escolheu não constituirá propriamente uma nova espécie culinária. Um exemplo: você pode imaginar mil variações em torno do panetone, e ele continuará a ser o pão natalino. Só quando ele degenerar (perder a condição de reproduzir o gênero) será uma outra receita.

Os grandes chefs, como Auguste Escoffier, não se furtaram a mergulhar no leito da grande tradição. O seu Ma cuisine (1934), ao contrário do que diz o nome, é a cozinha burguesa de todos os lares. Nada tem de Escoffier, senão a seleção das receitas clássicas e o seu abonamento. Seria absolutamente ridículo se ele pretendesse, de alguma forma que fosse, assinar um coq au vin.

Assim, os grandes chefs jamais pensaram nesses termos modernos - como remake, releitura ou o que for - para justificar uma simples repetição ou decalque de pratos tão consagrados pelos consumidores. No máximo, modestamente, dirão: “coq au vin à ma façon”... É o que basta para não serem criticados como traidores da tradição.

A “autoria” individual, stritu sensu, só nasceu em 1886, com a convenção de Berna. Não é à toa que as receitas culinárias não entraram no rol das coisas que possam ter sua autoria individualizada a ponto de gerar direitos. E não é à toa que a China, conhecedora do amplo trabalho coletivo e anônimo que é a cultura, se recusou a assinar aquela convenção.

5 comentários:

Claudio Moeiro disse...

Belo arguemento. E bonita foto.

e-BocaLivre disse...

Tks! Foto Pedro Martinelli

Claudia disse...

Posso reproduzir esta tua postagem no meu blog? Com link para cá, claro! É que eu falo isso tanto, há tanto tempo que eu acho ótimo quando alguém fala do mesmo assunto usando um belo e simples argumento.

Feliz ano novo,

C.

e-BocaLivre disse...

Claro, Claudia! Blog é common!!

Claudia disse...

Eu fui agente de fotógrafos e jornalistas por anos e ainda tenho o hábito de perguntar antes. Maravilha!

C.

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