Reproduzo aqui trechos da introdução que fiz para o livro A cozinha a nu, de Santi Santamaria, para a edição do Senac-SP:
“A Cozinha a Nu” (editora Senac-SP, 2009) é o livro esperado de Santi Santamaria, o “inimigo” de Ferran Adrià. Tudo o que é polêmico nessa relação e que interessa para a gastronomia está nele. O leitor, como eu, deve ter tido a impressão de que a chamada “guerra dos fogões”, que eclodiu no Madrid Fusión 2007, era uma simples escaramuça de egos. Santamaria atacou Adrià por inveja do sucesso deste. Assim foi a leitura, ao menos no Brasil, desse enfrentamento que é o tema do presente livro, onde é possível conhecer os argumentos desse grande cozinheiro sem o sabor de marmita requentada.
A presente edição traz ainda a vantagem de um posfácio que o autor escreveu no corrente ano para dar conta das reações à publicação do livro, mesmo mais estapafúrdias, como, por exemplo, a afirmação de que Santi foi movido pela inveja, em vez de se reconhecer que levantou questões pertinentes com o propósito de discutir em profundidade os rumos da gastronomia.
Assim, uma coisa precisa ficar clara desde logo: Santi Santamaria não é um Antonio Salieri. A “guerra dos fogões” não é um enfrentamento do Mozart da cozinha com o seu Salieri. Santamaria não entrará para a história como personagem obscuro, à sombra de um gênio. Ele, como Adrià, é um general de 3 estrelas desse exército de Brancaleone que move a gastronomia. Por isso, muita gente expressiva do establishment da gastronomia preferiria que esse enfrentamento não existisse, pois aparentemente ameaça a ordem natural das coisas. Mas, de verdade, o que o que veio a público foi a explicitação da pluralidade de caminhos que a gastronomia comporta.
É claro, também, que a mídia, sempre à busca de novidades, tem em Ferran Adrià o seu "showman", e não se pode acusar Santamaria de “inoportuno” por haver irrompido no cenário do Madrid Fusión 2007 para, de forma incisiva, defender seu ponto de vista, naquele que é o mais importante palco para o qual os cozinheiros e jornalistas voltam a atenção. Nesse palco, a grande provocação de Santamaria foi: “Como podemos nos orgulhar dessa cozinha molecular ou tecnoemocional que enche os pratos de gelificantes e emulsionantes de laboratório?”, acrescentando que “essa onda científica está aleijando a alta cozinha”.
À parte quaisquer outras frases infelizes ou desabafos que tenha proferido, a questão não é impertinente; e é certo também que o “mundo gastronômico” não está preparado para enfrentar a discussão em alto nível –tanto é que se negou a Santi Santamaría um espaço no Madrid Fusión 2009 para expor suas idéias.
Ora, podemos dizer sem medo de erro que, nas fronteiras da gastronomia, enfrentam-se duas modalidades de comida: a comida com “cara de comida” e o ilusionismo culinário apoiado na desnaturação dos alimentos que, explicitamente, recorre a produtos químicos de uso corrente na indústria alimentar.
Comida com “cara de comida” é termo cunhado por Michael Pollan para denunciar a indústria alimentar norte-americana, que, anualmente, leva ao mercado 17 mil novos produtos, sem que estes tenham qualquer preocupação em reproduzir padrões culinários reconhecíveis como tal. Para ele, como resistência, só deveríamos levar à boca aquilo que nossas mães e avós reconheceriam como “comida”. Esse ato parece conservador, se comparado com as tendências modernas da alimentação, inclusive na alta gastronomia.
Ora, aparentemente Santi Santamaria é um conservador. Há anos ele vem dizendo que “quando recebemos sensações identificáveis, o grau de satisfação é imenso”. É o contrário da linha de investigação de Adrià, que privilegia a pesquisa inovadora, a sensação de surpresa, ou seja, o insólito. Mas os ideais de cozinha –ou a “filosofia” de ambos– são tão distintos que é impossível compará-los com o objetivo de formar um só juízo.
A desnaturação que Adrià executa equivale à desconstrução de um produto natural -tal qual veio ao mundo- procedendo a uma re-construção, onde intervém a imaginação criadora gerando um simulacro de natureza. Nos produtos da cozinha de Adrià o trabalho humano jamais “desaparece” subsumido na “naturalidade” das coisas; ele está lá, gritantemente lá. Como no caviar de melão: peixes não desovam melão e, tampouco, melão produz ovas. Diante do insólito, fica claro que o produto é um artefato.
Karl Marx, analisando o fetiche das mercadorias, dizia que, na produção seriada da indústria, só quando uma coisa apresenta defeito é que tomamos consciência de que as mercadorias não são “coisas naturais”, mas, sim, produtos do trabalho humano: o fósforo que não acende, por exemplo. Podíamos dizer algo semelhante das obras de Adrià, pois elas não repousam na reiteração do mesmo, a serialização, para podermos distinguir entre “defeito” e intenção, entre o projeto e seu resultado. Ao re-criar sempre, ao não se repetir, ao perseguir a surpresa, Adrià coloca a experiência gastronômica bem longe da natureza “como ela é”. É como se a cozinha por inteiro fosse obra do artista, quase prescindindo do apoio nas coisas naturais. E é por isso que a química desempenha um papel tão importante no seu projeto ilusionista.
Ora, Santi Santamaria vê nesse primado ilusionista uma completa destituição do projeto humano em relação à natureza. Quando contrapomos o artefato à naturalidade das coisas, nos alienamos frente à natureza. O que ele está a nos dizer é que essa autonomia do humano, buscada pela ciência e pela técnica, é também uma ilusão. Não é porque manipulamos os sentidos de forma lúdica que os nossos vínculos com a materialidade da vida esvaem. Apenas ficam ocultados e, assim, podem tomar rumos indesejados e -porque não dizer?– anti-humanos.
É para a desnaturação que o ilusionismo culinário parece favorecer que Santi Santamaria busca chamar a nossa atenção. Essa se insinua na vida de duas maneiras. A primeira, por essa artificialização do trabalho apoiado na química. A segunda, pela americanização dos hábitos alimentares.
Se o resultado do processo industrial fosse o pluralismo culinário não haveria grande problema a enfrentar, mas o que tem sido denunciado é a homogenização dos padrões do comer e o pauperismo alimentar subjacente. É claro que nada disso pode ser debitado exclusivamente ao imperialismo, nem é assim que Santi Santamaria pensa. Ele sabe perfeitamente que a desestruturação da antiga família, com a decadência do hábito/prazer de cozinhar é que abre o flanco para o que chama de “desordem gastronômica” e ocaso da cozinha doméstica. É no combate a esse processo que Santi Santamaria concentra suas baterias, sendo que, se alguns tiros atingem a cidadela de Adrià, é porque este se pôs claramente como favorecedor da “desordem gastronômica”.
Na carta aberta que escreveu a Adrià e que vem reproduzida no livro, Santi chama a atenção de Adrià para a sua grande responsabilidade social na medida em que o chef é uma referência mundial. Pois bem, Santamaria entende que a liberdade de criação que Adrià defende (“cada cozinheiro decide o que deve cozinhar, como cozinhar e quando servi-lo”) não o autoriza moralmente a desenvolver batatas fritas para o conglomerado PepsiCo, especialmente quando essa empresa é acusada de utilizar alimentos transgênicos e ter produtos retirados do mercado por propaganda enganosa.
“No fundo, esse é o âmago do assunto. Ferran: eu não creio que tudo valha a pena. Creio que temos uma responsabilidade perante os demais, e por isso me viu anunciar utensílios de cozinhas e vasilhas na imprensa, mas nunca os aperitivos de uma multinacional. Também creio que a intromissão da indústria na alta cozinha –que, para mim, deveria ser um reduto de criação artesanal– chegou a novos patamares em parte por obra sua.” E ele censura, ainda, o elogio que Adrià faz dos químicos alimentares, como o alginato de sódio, utilizado largamente pela industria, como se o uso do produto fosse algo de que os chefs devessem se orgulhar. “Me parece gravíssimo”, acrescenta.
A questão da quimicalização dos alimentos não é nova. Sua discussão vem desde o século XIX, quando a indústria alimentar começa a sobrepujar as formas agrícolas artesanais de produção, fazendo do tema uma verdadeira fronteira entre a modernidade e a tradição. Passados mais de 150 anos, o assunto não desapareceu. Como registra Santi Santamaría no pós-escrito desse livro, “a Comunidade Europeia acaba de advertir, em relação à normativa internacional que redige o 'Codex Alimentarius' sobre os aditivos, que 'em geral se permite demasiados aditivos em demasiados produtos e em certas doses de uso são demasiado altos' e que 'deve se procurar reduzir o uso dos aditivos alimentares aos que sejam tecnologicamente necessários e limitar ao máximo que for possível' (...) É necessário sempre avaliar o binômio risco-benefício. Os nitratos e nitritos podem ser tóxicos ao se unir à hemoglobina ou reagir com as aminas, mas têm a propriedade de conservar a cor vermelha da carne e evitar a toxina causadora do botulismo”. Assim, continua sendo pouco sensato dar as costas a estas questões em nome de uma estética do alimento que tem sido preferida pelos praticantes de uma gastronomia dita “de vanguarda”.
Mais do que chef, Santi Santamaria se apresenta como cozinheiro. Entendo que a razão disso é que se vê mais como soldado nesta cruzada pela alimentação sadia e saborosa do que como um criador de novidades. Qual, porém, a sua trincheira?
Santi pensa a cozinha como sinônimo de civilização: “Abandonar a cozinha é o mesmo que perder uma civilização. Se não cozinhamos, mudamos o sentido de nossas vidas”1. Bem sabemos o papel que este homem de pouco mais de 50 anos teve na restauração da culinária catalã na fase imediatamente posterior ao fim da ditadura de Francisco Franco. Ele, Juan Mari Arzak e tantos outros praticamente recriaram a tradição alimentar popular, inserindo-a como tema da alta cultura que se desenvolveu de forma vigorosa especialmente a partir dos anos 1990. Seus livros do período –"La Cocina de Santi Santamaria" (1999) e "El Mundo Culinario de Santi Santamaria" (2001)– têm esse sentido político e etnográfico incontestáveis, estando na base do desenvolvimento posterior da alta gastronomia espanhola.
A Catalunha, que vivia seu processo de afirmação em meio à miríade de povos espanhóis, encontrou na gastronomia um tema tão importante quanto a utilização pública do idioma próprio, deixando em segundo plano o castelhano... e as paellas. Porém, dirá Santamaria, “ser um cozinheiro clássico na nossa sociedade de consumo é a fórmula segura de se ganhar inimigos e converter-se em um revolucionário perigoso”.
Seu entendimento de cozinha vai além dos aspectos materiais da transformação que se opera nesse espaço especializado, incluindo a convivialidade, a memória, a tradição, etc. Para ele, a memória “desperta nossa felicidade”2. Talvez por isso mesmo –por transcender os fogões– ele nos diz que o cozinheiro de hoje é uma espécie de “filósofo moderno”, isto é, alguém que desenvolveu uma reflexão sobre as relações dos homens entre si e destes com a natureza da qual a “verdadeira filosofia” parece ter se destituído3.
Nesse livro, está claro que a sua cruzada é levar este tipo de reflexão para dentro do espaço social da cozinha, colocando em posição subordinada toda e qualquer inovação. O que ele abomina no trabalho de Ferran Adrià parece ser exatamente este aspecto. Por isso acusou-o de estar utilizando produtos que “comprovadamente” são nocivos à saúde em certas proporções. Se a “prova” é suficiente para sustentar a acusação pouco importa aqui, visto que, de fato, há um deslumbramento técnico e tecnológico que grassa por toda parte como se esta fosse, de fato, a varinha de condão para a produção de uma gastronomia moderna.
Evidentemente Hervé This nada tem a ver com isso, e é possível que tampouco Adrià, mas a atitude e o comportamento novidadeiro, a sedução pela química, são fatos corrente na cozinha dita agora “tecnoemocional”. O próprio Adrià é consciente da extensão do fenômeno da imitação e de como, nesse processo, ela adquire novos significados, podendo se tornar uma espécie de feitiço contra o feiticeiro. Está claro que o domínio claudicante das ciências, como é próprio dos cozinheiros, é uma via de introdução de riscos novos na alimentação humana. Quantos copistas de Adrià têm condições efetivas de estudar a fundo os químicos culinários?
No entanto, seria faltar com a verdade atribuir a Santi Santamaria apenas uma atitude de precaução. Sua militância contra a tendência pró-cozinha-molecular é radical. Ele a acusa, ainda, de subordinar o comer ao ritmo estafante da vida moderna, de sorte que perdemos o prazer do aconchego que a cultura, a família e a memória da tradição culinária nos propiciam, inclusive como antídoto ao estresse inevitável dos dias de hoje.
16/02/2011
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3 comentários:
Grande matéria, Dória! A cozinha, o pensamento profundo e a figura polêmica de Santi Santamaria farão muita falta no cenário gastronômico mundial. Um grande chef, um intelectual e um homem de grande coragem! Luciana Bianchi
Pois é, acabei de adicionar um texto sobre isso no meu blog e aproveitei para revisar o livro, li há algum tempo, e percebi que de fato o homem tinha uma alma pujante. Traz questões bem 'ardidas' e quebra um discurso, na minha opinião, cansativo e quase hegemônico em torno da gastronomia contemporânea com seus heróis moleculares.Fiquei chateada com a notícia, pois ele irá fazer falta.
Abraços
Janine
Com certeza vai fazer falta mesmo. Ele foi muito polêmico mas estava defendendo o que ele acredita. Foi muito inhusto ser considerado um careta e invejoso de um chef que virou popstar. Gosto muito de sua defesa.
Outra coisa,recentemente li uma reportagem sobre o cansaço do papo gourmet e a volta da comida sem frescuras, da Iara Biderman. E logo um texto sobre a culinária ogra, do André Barcinski. Eu confesso que não gostei e não concordo com nenhuma das duas. No entanto, fiquei muito impressionada com a repercussão e a quantidade de comentários e pessoas que concordam plenamente com comer caviar sonhando com um miojo!!! Meu Deus!!! Gostaria de saber sua opinião sobre isso.
parabéns pelo blog.
Manuela
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