Breve comentário meu, publicado no Paladar de hoje, ainda sobre o livro Modernist cuisine:
As ciências não fazem parte da formação de cozinheiros tradicionais. Por isso são empiristas incorrigíveis, propensos a acreditar que arte e magia são a essência do cozinhar. E são alienados em relação às matérias-primas degradadas que usam, como o frango e o salmão – ignorância escondida atrás de vocabulário mistificador: natural, orgânico, biodinâmico, sustentável.
Mas foi a pirotecnia que contrapôs cientistas como Hervé This e entusiastas da tecnificação culinária como Ferran Adrià. Em comum só a consciência de que a técnica significa maior exatidão nos processos de transformação. Se as pessoas se embasbacam com isso, é outra questão. Não foi a culinária que criou o poder mistificador da técnica.
No despontar do séc. 20, Auguste Escoffier ainda acreditava no modelo das ciências à maneira do séc. 19. Apresentou as 5 mil receitas da alta cozinha francesa como fórmulas e exaltou o chef-saucier como o químico esclarecido. Depois dele a cozinha se tornou canônica, antes que investigativa, e a inovação migrou do artesanato para a grande indústria. Só em 1976 se sentiu o primeiro abalo do século, quando Paul Bocuse decretou a caducidade das receitas.
Logo vieram o micro-ondas e outros gadgets que Modernist Cuisine elenca. Mas por que pessoas que “twittam” da cozinha erguem barricadas contra as novas técnicas? Por que se aferram no elogio do frango assado dominical, como se o pecado do “vanguardismo” fosse maior que envenenar clientes com salmão e frango intoxicados de antibiótico? Sentem a ameaça aos conhecimentos que dominam e reagem como paladinos de um humanismo encharcado nas velhas marinadas.
Quando Adrià escreve que o livro representa “um novo ponto de partida para o futuro da cozinha”, está dizendo que ele permite que cada cozinheiro aquilate o quanto está distante da dinâmica atual do setor. Tecnicamente, Modernist Cuisine é um consolidado do “estado da arte”, não muito mais que isso. E que anuncie um confit de canard ou um acarajé feitos de modos mais eficientes que há 200 anos é uma boa nova, não uma ameaça à memória da vovozinha.
Não existe essência humana independente do trabalho. A técnica, meramente ferramental, só garante resultados mais precisos. Deixar a novidade técnica conduzir a cozinha é o mesmo que deixá-la entregue à magia dos babalorixás: ambos escondem o mundo, em vez de desnudar sua dinâmica material.
Para o comensal, contudo, nada se sobrepõe ao próprio paladar.
31/03/2011
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3 comentários:
Dória,sua reflexão me lembrou os ataques recentes que o Josimar Melo e o Marcelo Katsuki fizeram --na última edição da Prazeres da Mesa-- contra a tal "confort food". Fiquei com esta dúvida: você também está militando neste front de batalha que tenta demonizar a comida simples como algo que não está à altura dos paladares mais sofisticados?
Sr. Dória,
Como professor de culinária japonesa, especializado em sushi, não sei se entendi bem seu ensaio. Gostaria de expor minhas idéias a respeito. Hervé This, o verdadeiro criador da "gastronomia molecular", expressão subjetiva, uma vez que tudo é molecular, inclusive os alimentos. This foi importantíssimo na descoberta de técnicas que são fundamentais para cozinheiros. Paulo Bocouse, idem, mas sua "nouvelle cuisine" também teve devaneios do tipo criar prato à base de "tabaco cubano". Ferrán Adria depois de ser citado no NYT se tornou um mágico-celebridade, algo bem comum ao estilo americano de criar factóides. Por outro lado, ninguém cita o saudoso Santi Santamaria, com sua "comida de lembranças". Como cozinheiro e pesquisador, não consigo engolir essas normoses e tampouco os modismos que distorcem e embaçam a cozinha bem feita. Diga-se, cozinha bem feita, aquela com digital do especialista, aquele que se mira no aperfeiçoamento de suas técnicas. No Japão, o "shokunin" (especialista) é citado como "aquele que alcança a excelência" através de sua obstinação em se aperfeiçoar dia a dia. Ferrán Adriá não é um cozinheiro, mas uma celebridade; comer é um ato diário, que nosso corpo exige. Não se vive de espumas e nem pirotecnias. Cozinhar é uma arte da técnica.
Claudio,
voce não deduziu isso do que escrevi, certo? E não creio que Josimar pense como você descreve.
Abraços
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