Passada toda essa pedreira que é enfrentar os números, o que mais é necessário referir sobre como um restaurante durar mais de dois anos? É bom lembrar que estou falando dos simpáticos bistrôs que gostaríamos que fossem quase eternos: são pequenos (no máximo 60 lugares) e aconchegantes; o dono sempre está lá a nos cumprimentar, conhecemos os garçons e o cardápio; nos sentimos acolhidos, não esfolados pela ganancia. Bem, o que falta analisar é o chamado “modelo de negócio”.
O tal “modelo” é uma construção hipotética que combina cardápio, preço, público-alvo, localização, aluguel, numero de lugares, a hospitalidade que se quer praticar, a decoração, etc. Ele é o projeto geral, visto também da ótica da rentabilidade.
No nosso bistrô, imaginário ou real, são desnecessários o manobrista, o segurança, a hostess, o sommelier, o barman e o maitre. Viemos a pé ou paramos na zona azul, nos sentimos seguros; conhecemos o cardápio de ponta a ponta, sabemos o que comer e o que beber, não queremos nenhum drink extraordinário, como o dry Martini do Buñuel e, se é algo especial para nós, podemos levar nosso vinho e não cobrarão rolha. No mais, tomamos água de jara, como em casa; o couvert, simples, não custa mais do que R$ 4,50.
O fundamental é que se trate de endereços confortáveis. Em todos os sentidos. São espaços gastronômicos que não possuem nem mais nem menos do que o necessário para aqueles que comem fora de casa e não querem transformar essa necessidade num evento espetaculoso, numa nova experiência inesquecível ou seja lá o que for. O que Adrià ensinou para a gastronomia não cabe nesses bristros, embora muitas vezes seus donos vivam essa ilusão. Quando não vão bem, contratam as famosas “assessorias de imprensa”, acham que o problema é a propaganda. Mas, o que eles têm para comunicar? Isso é o fundamental...
Esse, então, é o primeiro problema. Em geral, nos bistrôs, o chef é também o proprietário e nem sempre ele é um administrador bem formado, embora conheça de cor as últimas novidades europeias e seja um craque na “cocção a baixa temperatura”. Na verdade, se gostam mesmo de cozinhar, têm horror da administração. E como gostam de cozinhar criam uma auto-ilusão: o público, ao comer, reconhecerá o seu valor e responderá mantendo a casa cheia, pagando o que cobram.
É claro que existem diferenças entre o público. Algumas pessoas gostam de novidades e sempre correm atrás delas. Mas a maioria quer um porto seguro. Os que buscam “novidades” não são, por natureza, um público fiel. Poucos restaurantes se firmam nesse terreno movediço, como o DOM (que não é um bistrô) ou o Clos de Tapas (que também não é) e assim por diante.
O fundamental para o bistrô não é a inovação, a pirotecnia e, sim, que ele esteja perto de casa ou do trabalho. Vamos a ele para comer cotidianamente, não excepcionalmente. Eles podem ser iguais – como são em Paris – pois o grande diferencial não é a comida (raramente algum “rouba” um cliente do outro), mas a localização e o modo gentil como somos acolhidos, chamados pelo nome pelos garçons. Um magret de canard ou um confit de canard, pode ai custar na faixa de R$40, mas não pode custar R$ 65 como em muitas dessas casas. Claro, o chef dirá que o seu pato é o melhor do mercado, canard barbárie, fornecido pela Agrivert; mas é isso mesmo o absolutamente necessário nessa circunstância de uma refeição frugal?
Em termos de marketing, eles não necessitam fazer aquelas produções incríveis, com fotos de pratos onde todos os componentes, organizados numa pirâmide, apontam para cima em uma página de revista absolutamente igual às demais. Precisam, sim, se enraizar no público-alvo, oferecer comodidades que os grandes restaurantes não conseguem. Precisam criar intimidade com o seu público. Esses bistrôs necessitam, enfim, ser menos pretenciosos, mais pé no chão. Precisam pensar no cotidiano dos clientes, não no que ele fara como excesso ou exceção.
Por essa razão, eles não devem se concentrar, se acotovelando num mesmo bairro onde, em vez de formar seu próprio publico, estarão apenas disputando o público dos vizinhos. Devem escolher endereços onde não têm concorrência e que não serão tão cedo disputados pelos outros modelos de restaurantes. Desse modo, servirão aos clientes e não ao mercado imobiliário. E esse será sempre um bom ponto de partida para o exercício dos preços que condigam com a necessária rentabilidade, expressa no EBTIDA.
O chef proprietário cuidará melhor dos seus e dos nossos interesses ao pensar em construir equações viáveis economicamente, manipulando o preço das mercadorias, a folha de salários, e, sobretudo, aquilo que faz o cliente voltar e voltar, garantindo a casa cheia.
E o que faz o cliente voltar? A hospitalidade, que não se resume a servir uma comida honesta. Inclui, ainda, a percepção de que uma mesa grande que gaste, digamos, R$ 1 mil, não deveria, de modo algum, pagar uma mesquinha rolha de R$ 30 por um vinho que os clientes trouxeram. Mais do que normas de negócio, se requer sensibilidade acesa, presente, dos dirigentes.
Se não for assim, se não garantirem a casa cheia e a rentabilidade que fundamenta a reprodução do capital, os proprietários podem tirar o cavalo da chuva. Um público minguante fará, necessariamente, que o investimento inicial caminhe paulatinamente para valer nada. Numa casa fechada por falta de publico nem sequer os moveis conseguem ser vendidos, a não ser na bacia das almas. O que era um sonho acalentado por anos, não passará de sonho de uma noites, como verão.
Minha própria experiência, semana passada: um dos restaurantes do Itaim. Contei, no salão, 6 funcionários e uma ocupação que não ultrapassou em qualquer momento 15 lugares. Estacionamento, R$ 14. Agua para 2, R$ 18 reais. Conta final de R$ 114 por pessoa. Comemos duas massas, couvert e dividimos uma sobremesa. Meu amigo, que adorou a comida: “Não volto mais”. O que mais o contrariou? O assédio incessante dos garçons para servir água, repor o pão do couvert com uma pinça de garfo e colher; o maitre que se desdobra em mesuras cerimoniosas distante da mesa, para oferecer o cardápio. Em 90 minutos de refeição, contei 25 abordagens, dos vários funcionários, interrompendo nossa conversa.
Se não estivéssemos ali, pagando desnecessariamente uma fração de aluguel alto (digamos, R$ 8 a 10 por cliente), aquela barbaridade por um litro de água, o estacionamento e aquele pessoal inútil no serviço, que só serve para emprestar-lhe falsa pompa e circunstância, calculo que nosso gasto per capita não ultrapassaria R$ 65. Seria um ambiente descontraído, uma refeição agradável.
Estou convencido de que faltam os simpáticos bistrôs, descentralizados do Itaim e da Vila Nova Conceição (novo ponto de concentração), atuando numa faixa de preço entre R$ 50 e 70. Acredito que a disputa do preço e da descentralização esteja sendo ganha pelos estabelecimentos em shopping centers. Nas ruas dos dois bairros citados, ao contrário, sobram aqueles que perseguem um ticket médio de R$ 100. Posso estar errado, mas a “turma dos R$100” não perde por esperar. Seu modelo de negócio tem um limite e chegaremos lá. Aposto.
17/03/2011
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6 comentários:
Perfeito, Dória!
Um beijo,
Ana Paula
Dória,
Você é um craque. Acompanho o seu site a tempos. Suas pensatas são otimas. E você gentilmente as divulga para um belo propósito: construir uma gastronomia factível e válida nestes tristes trópicos.... diga-se ...cada vez mais tristes por sinal....
Perfeito. Tem toda razao. O que importa a comida ? Se fossemos levar em conta a qualidade da comida, a grande maioria dos restaurantes estaria fechado. Mais ou menos uns 98%. Ainda bem que ainda tem alguém que se importa com negòcio.
Mauro Oliveira
Caro Dória
Fiquei bastante surpreso ao ver seu blog tratando o restaurante como negócio. A maioria das matérias fala de chefs, pratos, gastronomias e outras firulas, mas raramente tocam na satisfação total da experiência, incluindo o serviço e o preço.
Por que fecham os restaurantes? É fácil a resposta. Quantos donos de restaurante seguem a legislação trabalhista em 100%. Quantos sabem na ponta da língua o custo de mão de obra, dos impostos, dos encargos, do aluguel, das taxas de cartões, da administração, do alimento, de bebidas. Isso sem falar na área regulatória com suas Visas, covisas, anvisas, prefeituras, procon, decons, idecs e outros peduricalhos. Imagine tudo isso somado e variando ao sabor da sazonalidade, das perdas e das incertezas. Ele tenta se defender assumindo riscos que não poderia, seja na informalidade parcial, seja no aumento abusivo de preços. E quebra depois de 6 meses. Como demonstra a pesquisa do Banco Mundial, fazer negócio no Brasil é insano, não é só na área de restaurantes. Somos o 153º país no ranking de descomplicação. Creio que o 2º mais complicado. Como esperar que uma empresa não profissionalizada sobreviva. O mesmo para a profissionalizada.
“Toque o berrante seu moço...” Vamos ver se alguém escuta. Parabéns pelo artigo.
Alcides Terra
Mais uma vez parabéns Doria!
Estamos no mercado a 13 anos divimos responsabilidades minha esposa na cozinha e eu administrando o salão e as contas e ao final das contas estamos aqui a 13 anos, vivemos bem servimos bem.
Corretissimo.
Abraços
Dalmo
Muito bom Sr. Dória. Preciso no uso das palavras e no modo como aborda o tema. Vou recomendar seu texto a alguns conhecidos, donos de restaurante.
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