17/05/2011

Quimet, o "fantasma que anda" das velhas taperias

Chovia. Apesar da pouca distancia, tive que tomar um taxi. Ao me reconhecer, Quimet abriu um grande sorriso. “- Você de novo?!”, exclamou. Era a segunda vez, no mesmo dia, que eu aparecia por ali, a um pulo do hotel.

“Sim, tentei ir ao Tikets do Adrià e estão lotados pelos próximos três meses. Você já foi? Confesso que fiquei um pouco decepcionado, pois não sabia que é costume reservar para se tapear.”

Quimet simplesmente sorriu e acrescentou em tom irônico: -“Não, ainda não fui lá. Mas fiquei muito honrado dele escolher a minha região para se estabelecer”...




Quimet é o quarto na linha sucessória do Quimet & Quimet (Poeta Cabanyes, 25, Barcelona). Ele é uma espécie de “fantasma que anda” (Lee Falk) na ciência de preparar tapas.

Antes de Adrià isso era uma coisa mais uniforme, mas agora parece que os ventos começam a apontar outra direção. “Tapear” poderá deixar de ser algo que se pratica entre amigos para ser uma modalidade do comer entre desconhecidos.

Fiquei observando Quimet o quanto pude, fazendo uma pergunta ou outra para não atrapalhar muito. O inconveniente de se ir só a tapear é esse: você vira, involuntariamente, um perguntador voraz. Afinal, com quem comentar um sabor, senão com quem lhe preparou tapas?

A casa vai lotando aos poucos. O burburinho aumenta. Quimet é auxiliado apenas por uma jovem mulher com quem troca raras palavras, como numa orquestra. E ele não se divide para conversar com todos os clientes. Se multiplica.


Mas Quimet parece gostar do diálogo. Não existem, por exemplo, travessas com produtos já terminados onde você possa, calado, se servir. Ao contrário: ele está postado diante de um expositor que mais lembra o expositor de um sushiman. Da esquerda para a direita, vários frutos do mar em conserva, terminando por carnes em conserva, como terrines.

Quando você pede, por exemplo, um salmão defumado (e, distante do Chile, ouso pedir), segue-se a pergunta: “Você quer que finalize com anchovas ou com mel trufado italiano?” Diante da sua vacilação, acrescenta: “veja bem! São caminhos diferentes!”. Então, ele pega pacientemente uma torrada que está num cesto disposto na prateleira atrás de si e começa a montar a peça, entregando-a num pires e anotando na sua comanda.

“-Vinho?” E segue-se a explicação sobre a meia dúzia de garrafas abertas.

A cada “tapa” retoma-se o diálogo sobre o comer. E, aos poucos, você vai percebendo que há uma lógica muito bem armada permeando todas as suas escolhas. As torradas são sempre as mesmas.

Sobre elas, uma base que pode ser um cream cheese, cebolas picadas e caramelizadas ou uma massa suave de tomate. Em seguida, os frutos do mar cujas latas se vê nas prateleiras e que se encontram todas à venda, com preços variados; ou a terrine; ou ainda os cogumelos; o bacalhau ou o salmão, ambos em finas fatias. Para a finalização, o mel trufado; reduções de balsâmico ou de vinho Pedro Ximenes; angostura, etc.

Cada construção dessas revela a arte de Quimet. E ele informa que está pesquisando como usará novos produtos, como uma “angostura” recém-lançada, com aroma acentuado de casca de laranja.

Há também as porções, como as de queijo, servidas com uma castanha em calda e um pedaço de gelatina feita com redução de Pedro Ximenes e um toque de brandy. Há as porções de frutos do mar também. Aqueles das latas organizadas na prateleira atrás de si.

Os espanhóis possuem uma relação muito especial com as latarias que, nós, brasileiros, desprezamos. No íntimo pensamos na sardinha em lata como alimento de pobre e, pois, pobre em si mesma. Mas Quimet disserta longamente sobre as latas para mim, interrompendo um momento ou outro para servir um cliente.

Para ele, há frutos do mar que devem ser comidos como vem na lata; outros, aceitam um tempero qualquer e, outros ainda, que, para ficarem bons, devem envelhecer alguns anos na lata. Como os vinhos na garrafa. E fico pensando na fúria das nossas autoridades sanitárias sempre prontas para causar um “flagrante” em quem estoca mercadorias com mais de um ano de prateleira. E lembro de como, no Brasil, essas normas destruiram um ótimo queijo envelhecido: o Palmira.




Ah, os queijos! Quimet me coloca diante de uma seleção deles. Quase todos espanhóis, alguns ingleses. Discorre sobre a semelhança entre o “Torta del Casar” e o Serra da Estrela. E não deixa de lamentar a ofensiva das autoridades sanitárias européias contra os queijos de leite cru. “Só a França nos defende. Em breve estaremos fazendo contrabando de queijos”, acrescenta, me recordando a luta pela preservação do queijo Canastra...

Aos poucos a taperia vai se esvaziando. Olho pela última vez à volta, observando as centenas de produtos - entre destilados, vinhos e latarias - à venda. Recordo as velhas “vendas” de estrada do interior paulista, já deglutidas pelos supermercados. Penso na ousadia de Ferran Adrià e seu Tickets, e me pergunto se ele tem consciência da imortalidade do “fantasma que anda” - circunstancialmente encarnado naquele jovem e simpático Quimet.

5 comentários:

Ricardo Neves Gonzalez disse...

Dória, que post bacana!
Este Quimet é fruto de uma empresa familiar quase centenária. Aqui em Petrópolis temos algumas casas que não são exatamente centenárias, mas que já passam dos cinquenta e estão lá firmes ou quase firmes, seguindo em frente apesar dos ´fantasmas que andam `como este Espanhol Catalão, químico da gastronomia, errante. Aqui temos o curiosíssimo caso do Sr. Vivaldi um Senhor de seus setenta anos que faz há mais de cinquenta anos o melhor creme de leite fresco da região, com certeza um dos melhores do Brasil. Processo todo artesanal sem tecnologias e com muito, muito amor e dedicação. Serve ele um sorvete de queijo, apreciadíssimo desde aqueles tempos. Aqui em Petrópolis temos uma seara de bons produtos gastronômicos. Chocolates Katz que foi comprado e se modernizou, perdeu o encanto e o gosto, Caramelos D´Ângelo, desapareceram e outras delícias mais. Lógicamente muitas outras surgiram. Agora o Sr. Vivaldi luta para manter o negócio familiar mas se vê às voltas com vizinhos que tentam imitar o inimitável. O atendimento na Leiteria Brasil, os cortes bem realizados nos frios, o tal sorvete de queijo e aquele creme que todos buscam e ninguém faz igual, nem fará. O creme de leite é único, o do Vivaldi. Ele se vê às voltas com a questão sucessória na pequena Leiteria Brasil e muitas vezes o fantasmas andam,espreitam e por vezes eles assombram e assustam-nos como neste caso que nos faz pensar, como será nosso almoço de domingo, com deliciosos morangos sem o creme do Vivaldi? Poderão surgir 50 fantasmas que tentarão de todas as formas fazer o mesmo creme, porém NENHUM igual ao do Vivaldi.
Um ícone da gastronomia local que bem merece um lugar de destaque na Arca do Gosto do movimento Slow Food.

Ricardo Neves Gonzalez disse...

Dória, ontem à noite, na verdade, ao comentar o texto acima referido, não me dei conta de que referia-se ao Fantasma, personagem de Lee Falk e que ligava a figura do mesmo não ao Adriá e sim ao Quimet. Não tem problema. Referi-me ao comentar o texto acima não ao Fantasma de Lee e sim a fantasmas que costumam assombrar ou tentar fazê-lo mas encontram pessoas firmes e decididas a espantá-los. Vida a Sr. Vivaldi e sua Leiteria Brasil!

Anônimo disse...

Dória, só tem uma coisa, não é "Fantasma que anda"que se diz, é "Espírito que anda". Fantasma é o nome de guerra, "Espírito que anda" é o título que os pigmeus deram ao personagem.

Rubens Ghidini disse...

Com lágrimas nos olhos me transpus ao cenário em questão. A identidade é algo que nos falta, que nos faz falta. Li o post sobre o queijo Canastra Real, e li todos os outros. Fico triste por nosso país incorporar essa filosofia norte-americana. Sinto falta da brasilidade que nunca tive...

Ideiafix disse...

Como eu o compreendo...

http://ideafix.blogspot.com/search?q=quimet

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