02/08/2011

Missa pagã de corpo presente

Ninguém podia imaginar que três dias de festa fossem terminar com uma missa de corpo presente. A julgar pela circunspecção do público naquela catedral, apesar do atraso da cerimonia, deduzia-se a importância do morto.

O sacerdote já estava no altar quando o caixão, conduzido por dois bombeiros, foi depositado solenemente diante do público, separando-o do altar. Ficou mais longe a fala do sacerdote, que parecia ecoar de tempos ancestrais, sendo secundada pelo seu diácono que, a cada gesto, a cada palavra, meneava a cabeça em aprovação.

O sacerdote começou por discorrer sobre a técnica de embalsamamento do corpo, explicando os costumes da terra e seus modos de fazer aquele trabalho. Prosseguiu expondo sua própria técnica, mostrando-lhe as vantagens - o que pareceu incontestável. E como era coisa nova, também pareceu natural que a apresentasse de modo novo, em video, incomum em rituais assim. Humilde, como convêm a um sacerdote, cuidou de não desdenhar da tradição só para engrandecer-se.

Em seguida, chamou ao altar alguém que conhecia de perto o morto e sua família. Foi um depoimento comovente sobre a história de quem quase desaparecera do mapa, mas que teve forças para lutar pelo dignidade da própria família, vivendo hoje de modo próspero num lugar que quase ninguém sabe onde fica; mas está lá, no mapa, para os mais incrédulos.

No seu ritual pagão, canibal, o sacerdote passou, em seguida, a discorrer sobre as virtudes alimentares do morto. Suas carnes diversas, sua pele, se prestavam a várias preparações que, por deliciosas, nos faziam quase esquecer a sua morte, necessária para chegar até ali, àquela inércia selvagem que a todos contemplava em silêncio.

Muito trabalho exigira antes. Primeiro, procedimentos de purificação para tirar-lhe o “pitiú”. “E até no solo nu, as postas oblongas, brancas, rosadas daquele peixe, pondo no ar o cheiro nauseabundo que o indígena chama pitiú”, escreveu Veríssimo em suas Cenas da vida Amazônica. Mas o sacerdote, não satisfeito, ainda discorreu sobre as coisas reimosas, que é a forma culta de se referir à ideia de fluxo, corrimento de qualquer liquido, afluência, curso das coisas, curso da vida ou vicissitudes da fortuna, nos explicam os livros.

Limpo o corpo de evocações de pitiú ou de coisas reimosas, chegou o momento da comunhão, e pareceu absolutamente normal que, a cada pessoa do público, fosse entregue um pequeno copo com um liquido sanguíneo, como vinho espesso, acompanhado por uma pequena hóstia com aparência de mandiopã. Foi o momento alto da circunspecção.

Cada um, calado em seu lugar, sorveu o liquido e dispôs a hóstia-mandiopã sobre a língua. A julgar pela origem do morto, mais parecia um ritual yanomami, quando esses índios queimam seus mortos, choram a perda, rememoram seus feitos, comem as cinzas para que possam realizar a longa travessia para o outro mundo, quando então podem esquecer seus nomes, nunca mais se referindo a eles. Mas ali, ao contrário, seria o morto sempre lembrado por seus sabores. Pois em seguida veio a sua carne, sobre farofa, quando o defumado lembrava o bacon, incrustando o morto em nossa memória.

Mas a comunhão momentânea com essa tradição indígena fez, lentamente, desaparecer o torpor iniciado com a chegada solene do corpo; e foi possível ver o que se passava naquele ritual de devoração: aquele templo era uma sala do Hyatt, onde, após três dias de festa, assistia-se à ultima aula - das mais esperadas - sobre os usos do pirarucu na cozinha amazônica, parte do evento Paladar - cozinha do Brasil.

O sacerdote, outro não era senão Thiago Castanho. O diácono, seu irmão Felipe. O morto, o enorme peixe de metro e meio que os dois nos fizeram o favor de trazer congelado de Belém, presenteando-o, depois da cerimonia, ao bispo da diocese, Alex Atala. As técnicas de embalsamamento do corpo: técnicas tradicionais de salga do pirarucu - às quais, em excessiva modéstia, acrescentou Thiago mais uma, de salga a vácuo, pela qual se desculpava se feria a tradição.

Descreveu ainda os experimentos com a pele do peixe que, seguindo os passos similares da pajelança de Rodrigo Oliveira com o torresmo, transformou num couro que, frito, mais parecia um madiopã com sabor de peixe. E o líquido sanguíneo, espesso, nada mais era do que o açaí, como tradicionalmente consumido no Ver-o-peso, e não docinho, como consumido pela moçadinha turbinada da paulicéia.

E aquele que parecera o discurso de um parente do morto, nada mais era do que o discurso entusiasta do criador de pirarucu na ilha Mexiana, num projeto inédito de manejo que, hoje, permite considerar-se o magnifico peixe a salvo da extinção.

Tudo verdade e imaginação. Tudo coisa que turva a razão diante daquele animal magnífico, deitado em leito de gelo, enquanto dois jovens cozinheiros, imbuidos do espírito de pesquisa, mostravam que Belém do Pará não é um ponto distante no mapa.

Belém: um lugar onde pulsa a gastronomia em sua melhor linhagem; aquela que, sem dar as costas à tradição, mostra como pode ser modernizada com técnica, experimento, persistência e criatividade. Esses dois jovens sacerdotes da nova cozinha amazônica ainda vão dar (muito mais) o que falar.

7 comentários:

Sabrina Romano disse...

Que texto delicioso, Dória! Não senti os aromas do peixe, mas a palestra do Shimura foi incrível; simples e solícito, dá gosto de ver uma pessoa engajada, que fala com tanto amor sobre o trabalho. Abraço!

Anônimo disse...

Belo texto, parabéns!

Luiz Fernando disse...

Tive o prazer de auxiliar Thiago Castanho e Felipe Castanho nos preparos dos pratos no evento, vejo nos olhos deles o amor pelo produto e pela gastronomia, não me cansei de elogiar, pela simplicidade e simpatia como nos, sua mera equipe de apoio no preparo dos pratos eramos muito, mas muito bem tratados, agradeço aos dois irmãos por ampliar um pouco que seja nosso conhecimento em tecnicas e preparos e seus pratos maravilhosos, nos vemos em Belém em breve.

Neide Rigo disse...

Exatamente isto que senti. Adorei o texto. N

Constance Escobar disse...

Tive o prazer de estar com Thiago em Belém e ele é exatamente o que descreves em teu post: um sujeito simples, sem afetação, disposto a mostrar que a grandiosa cozinha de sua terra pode ser modernizada, sem desrespeitar a tradição. Certamente, ainda vai dar muito o que falar.

Camila Britto Messias disse...

Esses dois "meninos" (Thiago e Felipe) vão longe...
Venham para Belém e conheçam o Remanso do peixe, o "templo" do pirarucú!!!!!
Parabéns!!!!

Anônimo disse...

Belíssimo texto Dória! Dá gosto de ler!
A culinária da Amazônia ganha um texto a altura da sua riqueza. E que altar!
Um beijo, Ana

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