13/10/2011

Leitor de 5° - Caipiras

Bula

Caro leitor, você pode saltar os assuntos. Não precisa lê-los na ordem; aliás, se preferir, não precisa ler assunto algum. Me explico:

a) assunto I

:os ditos “manuais da redação” dos jornais ensinam que os textos devem ser breves, concisos, objetivos, curtos. Desconfio que essas normas foram boladas para orientar textos publicitários a partir da constatação de que o leitor dedica poucos segundos à leitura de um texto e, se ele for longo, não compra.

Mas compare Ilustríssima com Comida, ambos do Folhão; Sabático com Paladar, ambos do Estadão, para ver como os editores aplicam essa regra de maneira desigual e combinada.

Eles parecem acreditar que os leitores de gastronomia são mais ligeiros do que aqueles dos suplementos culturais; crêem que esses são mais profundos e atentos, dispondo de mais tempo para leitura também. Talvez sejam mais inteligentes em contraste com essa gente de espírito prático que gosta de cozinhar, não de ler - ora bolas! Quem gosta de ler, simplesmente gosta de ler! Sabático e Ilustríssima satisfazem mais, ao passo que Comida e Paladar frustam leitores que tiram prazer da leitura.

E não gosto dessa tentativa editorial de mimetizar o jornal com a internet (quando os textos vão ficando grandes, interrompem o leitor e o remetem para a internet, como a dizer “jornal não é espaço de ler!”). Transbordaram os colunistas em blogs, de sorte que você precisa virar um pesquisador para reunir fragmentos, não perder o fio do raciocínio. Sabático e Ilustríssima são mais práticos: se não gosto de ler, aposento o suplemento, se gosto, mergulho nele.

Muita gente diz que eu deveria escrever textos mais curtos. Mas o que impede você, caro leitor, de encerrar a leitura por aqui? Nada! Então, por que devo renunciar ao prazer de simplesmente escrever? Por nada! Mas, nos jornais, querem colocar no lugar da sua não-leitura um bruta anuncio que paga a produção dos mini-textos. Em Passargada há uma regra: “escreverás o texto do tamanho que lhe aprouver!” E você, leitor, lerá, sem remorso, o quanto lhe baste. Em Passargada somos amigos do editor.

Gosto de colunas, como a da Nina Horta e do Marcelo Coelho, na Folha. Por nada deixo de ler, independente do que escrevam. Mas ainda não acostumei às da Alexandra Forbes. O jornal é essa coisa assim, estável, que nossa mente confortavelmente recorta, “edita” todos os dias. Quantas coisas passam despercebidas? Se fossem menores em tamanho seriam mais notáveis? Não creio.


b) assunto II


Uma quinta dedicada a São Paulo, paulista. Duas capas: Paladar aproveita a época das jabuticabas. Comida, fixa-se na culinária caipira.

Paladar é metido a engraçadinho. Não consegue se portar diante da jabuticaba sem remeter às esferas de Adrià. Cita vários lugares onde se pode comer jabuticaba e seus derivados (licor, geléia, sorvete, caipirinha). Esquece de citar a caipirinha do Brasil a Gosto e o licor do DOM, mas cita outros produtos desses dois restaurantes, à base de jabuticaba.

Luiz Horta toma vinhos croatas. Isabela Raposeiras empresta seu nariz de ouro para, junto com outros narigudos e bocudos celebres, criarem um blend de cachaça.

No Comida, vemos que a garota dos olhos insuportáveis, que atende por Tatiana Szeles, embarca na onda espanhola. Logo abaixo, na mesma página, Alexandra Forbes fala dos restaurantes ibéricos em São Paulo. Os do passado, que já não valem mais (morreram mas ainda não deitaram), os do presente e os do futuro. Puxa a orelha de Vitor Sobral, por cobrar caro.

Comida dedica página dupla ao “mosaico caipira”, isto é, a uma história multifacetada da culinária paulista. Boa pesquisa, texto enxuto de Luiza Fecarotta, foto da marmita cuidadosa do Brasil a Gosto. Um pequeno texto meu (leia o assunto III) devaneia sobre a vergonha dos paulistas em relação ao epíteto “caipira”.

Tudo estaria bem, ótimo, não fosse a receita do cuscuz. Os caipiras jamais comeram cuscuz como sugerido, feito por uma certa bufeteira Maria Alice Solimene. A técnica de cozê-lo ao vapor era constitutiva do prato, como ainda o é no sertão, Brasil afora. Quando se evoca a “cozinha caipira” seria bom alguma fidelidade aos seus modos de fazer. Essa farofa feita em panela e enformada como pudim foi chamada “cuscuz paulista” por antonomásia e por preguiça.

Do cuscuz guarda a evocação da farinha de milho, conforme passou a ser feito pelas cantinas e churrascarias do pós-guerra. Reduzido a “entrada”, tornou-se presença obrigatória nos carrinhos de antepastos; uma degeneração da culinária caipira, aceita pelo público. Acrescentou-se também ervilha, que não existia no original, e acharam bom (na receita da Dna Solimene não tem ervilha, mas mete farinha de mandioca para dar mais liga à gororoba). Eis como uma tradição escapa entre os dedos: se lembramos o nome dos mortos, já não recordamos como eram em vida. E o jornal, deixando de lado a pesquisa, reproduz o cacoete comum.

Jefferson Rueda e eu ministramos um workshop no Paladar - Cozinha do Brasil, chamado “restauração conceitual e técnica do cuscuz”. Vejo que foi pregar no deserto. Paciência. Mas seremos xingados de puristas.

O mais de Comida: teischoku, por Marilia Miragaia; sites de vegetarianos que se amam pela dieta sem carne; pratos florais de primavera, por Igor Olszowski; resenha do Nami, em Santo Andre, por Josimar Melo. A garota que substituiu Jorge Carrara, (re)descobre os vinhos norte-americanos, que já havia descoberto precocemente em 1997.

Comida traz uma nota rápida sobre Momentto, um lugar sui generis, quase secreto, clandestino, de Fernanda Valdivia e Giovana Sonda, que faz jantares fechados, no modelo inaugurado na cidade por Lourdes Hernandez, e que merecerá comentário maior aqui, em breve. Nina Horta fala de casamento “com todo mundo em pé” e no que deu essa modernidade.

O que será que aconteceu com Luiz Américo, que não veio? Absorto pelo dia das crianças e da Santa? Ou expulso pelo big anuncio do Makro?

c) assunto III

Publiquei no Comida de hoje o seguinte texto (aqui reproduzido para quem não assina o jornal), ao qual deram o título de “paulista tem vergonha de ser roceiro, de dizer que comia tatu”:

Os pés foram se convertendo em raízes e fincando pelos caminhos onde bandeiras, e depois tropas e tropeiros, buscavam as minas. Enraizados, degeneraram. Não havia mais nobreza naquela malemolência, a picar fumo e contar histórias de um passado de sabe-deus, esperando sabe-quem.

No quintal, galinhas, um porco magro, espigas de milho, horta, e a mulher varrendo, varrendo, porque a qualquer hora, sem avisar, apeia passante. O professor Antonio Candido, antes de inventar a crítica literária, foi estudar o que restava dos caipiras em Bofete. E constatou extrema pobreza. Tudo muito pobre. Pobre e doente. Pobre por doente, já dissera Monteiro Lobato.

Mesmo a literatura que aquela gente rendia era uma literatura chinfrim. Monumentosa era a do Modernismo, no burburinho de apitos de chaminés de barro. Macunaíma não era daqui; só a cotia mentirosa, que ele disse ter visto no Largo do Café. É preciso literatura para construir um tipo social memorável. Já ouviu falar de Francisco Marins e sua saga dos caipiras?

O carioca tem orgulho de sê-lo; o potiguar, idem; o baiano ou o gaúcho, nem precisa falar! O país é um mosaico de tipos regionais, modos de falar, culinárias. O paulista tem vergonha de ser caipira, de puxar o “r”, de dizer que comia tatu e formiga. Há 200 anos aqui era o fim do mundo. Então, como é que tem tanto “paulista quatrocentão”? Só tinha bugres; e gente que caçava gente não é coisa de se orgulhar.

Mas limpou-se o sertão de índios para que a estrada-de-ferro fosse além de Bauru. Coisa vergonhosa, mas também esquecível. Os italianos, em seguida, plantaram o café. E vieram os espanhóis, os sírios, os japoneses e tantos mais. Era de gargalhar a fala dos italianos na sátira “La Divina Increnca”, de Juó Banannére, pseudônimo de um quatrocentão faceiro; na migna terra tê parmeras/ dove ganta a galigna dangola - dizia a sua nova Canção do Exílio.

Parecia que São Paulo estava começando. E nesse começo era a bracciola e o macarrão; o quibe, o puchero, o sushi. Somos os brasileiros mais universais do mundo. Celebramos em pizza o nosso destino. É um peso muito grande tudo isso. Para aliviar, liquidamos o cambucá, quase acabamos com a jabuticaba; liquidamos a perdiz, a codorna, as pombas. Quando viajamos, comemos perdizes, pombas e codornas.

O Brasil é muito longe. Mas estamos dispostos a redescobri-lo: comemos leitão pururuca, virado, quitutes à base de milho, e chamamos tudo “cozinha mineira”. Voltamos a comer formigas, agora da Amazônia. Somos ignorantes da nossa história, mas generosos com os vizinhos - próximos ou distantes.

4 comentários:

Bia Freitag disse...

Bom dia! Depois de muito tempo, comprei o Estadão hoje só para ler o Paladar e, em seguida, o seu comentário em Leitores de 5a. Também achei "pernóstica" a comparação da nossa jabuticaba com as "bolotas" do Adriá... Achei o caderno pobre em matérias e rico em anúncios... Uma decepção para uma amante da gastronomia como eu... Abraços, Bia (http://desafiosgastronomicos.com.br).

Alexandra disse...

Caro CAD, passo aqui voando, sem tempo de me alongar, apenas p dizer q vc e Jeferson pregaram sim, no deserto. Fiquei impressionada com a pequenez do evento. Evento caro, para ricos, lógico q não poderia atrair mais gente do q atraiu. Como já escrevi na Folha, se uma árvore cai na floresta, faz barulho? Methinks not. Querem passar o recado? Melhor via jornal do q em palestra para poucos...
ps. espero q se acostume à minha coluna um dia. é tão curtinha, a pobre, mas faço-a com gosto e esforço.

Chef Lucia Soares - pesquisadora da cozinha paulista disse...

Existe fruta mais paulista que a jabuticaba? Ser a "fruita" do nosso caipira não basta? Pelo menos nesse momento, em que os ventos sopram a favor dos regionalismos, por que será que a razão tupiniquim precisa buscar obsessivamente no estrangeiro instâncias de validação até mesmo para sua própria memória?

Marbene Araújo Bueno disse...

Prezado Carlos Dória,

Obrigado pela aula.
Sinto-me reconfortado em saber que muitas das coisas que percebia e não conseguia explicações ao menos razoáveis, obtive respaldo neste curto espaço de letras do seu blog.

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