09/04/2012

O milho paulista, debulhado em trabalho acadêmico

Feriados são instrutivos. Finalmente pude ler a íntegra da tese de mestrado da ex-aluna Rafaela Basso, orientada por Leila Algranti. É intitulada A cultura alimentar paulista: uma civilização do milho? (1650-1750), Campinas, Unicamp, 2012.

Poucos trabalhos de mestrado tem esse fôlego, que consiste em esmiuçar fontes primárias para reavaliar teses clássicas - como aquelas sobre a economia colonial paulista e os hábitos alimentares correspondentes - e dai decorre grande parte do seu valor. Afinal, usualmente um intelectual repete o que outro disse, tornando monótono o cenário cultural, desprovido de novidades. Só a história que vai às fontes primárias pode mudar esse quadro e esse é um trabalho de formiga, custoso demais para quem tem pela frente carreiras acadêmicas tão competitivas. Por isso a ligeireza da maior parte dos trabalhos, o que não se aplica a este de Rafaela.

Ela quer discutir a idéia de Sérgio Buarque de Holanda sobre o “complexo do milho”, isto é, a singularidade da dieta colonial dos paulistas - tese formulada com clareza em Caminhos e Fronteiras (1957), coletânea de escritos dos anos 1940, onde há um capítulo específico sobre o tema.

De saída, nos mostra como a tese de que a alimentação em São Paulo se diferencia do resto da colonia já é bastante explorada antes, desde os anos 1920, por Alcântara Machado, Ernani Silva Bruno e Alfredo Ellis Júnior. Depois, a mesma tese prossegue em Caio Prado Jr., Antonio Candido; sendo que outros autores mais recentes a reproduzem a partir desses “fundadores” das concepções do Brasil moderno.

Rafaela, revelando um bom tino de historiadora, irá discutir essas idéias se apoiando em fontes como Atas da Câmara Municipal de São Paulo, Inventários e Testamentos, crônicas, correspondências e relatos de viagem. As “imagens cristalizadas” que analisa referem-se à singularidade da alimentação local “relacionada com a produção policultora, com a incorporação empreendida pelos paulistas da cultura alimentar indígena, com a mobilidade e, por último, com a presença da cultura do milho”.

A comida do Setecentismo paulista

Não bastaria dizer que aqui se encontrou o milho utilizado pelos tupi-guaranis e a sua adoção cumpriu o papel semelhante ao da mandioca em outros lugares. O importante é, como mostra Rafaela, compreender como o milho se constitui no principal mantimento, conquistando essa posição associado à exploração das minas, no século XVIII, e não antes, pois até o século XVII ele esteve restrito à agricultura de subsistência, sem ter valor comercial - enfim, ainda não se produzia milho predominantemente para os outros no século XVII.

Nesse particular, a autora entende que Sergio Buarque de Holanda usou informações do século XVIII e, “por conta do laconismo caracteristico da documentação seiscentista, acabou transpondo para o período anterior”. Ou seja, fez uma ilação, não uma constatação; fez história conjectural, não fatual. Para os historiadores, talvez este seja o ponto mais importante da tese de Rafaela. Não para nós, interessados no milho propriamente dito.

A centralidade do milho como mantimento do sertanismo, plantado nas rotas que levavam às minas, até mesmo por “comissões de frente” que os sertanistas mandavam ao sertão, decorre tanto da sua inserção anterior no sistema de vida dos tupi-guaranis como da rapidez e facilidade de seu cultivo. O milho, uma vez plantado no sistema de coivara, frutificava entre 3 e 6 meses, rendendo entre 80 e 400 vezes as sementes plantadas, dependendo da bondade da terra, já podendo ser consumido cru, assado ou cozido - dispensando a panificação. A mandioca, exige de 12 a 24 meses, é mais difícil de transportar mudas e de fazer farinha.

Um tempo de maturação tão curto e tamanho desempenho, com tanta simplicidade, bem explicam a adequação do milho ao sertanismo. E explicam que as referencias a este “mantimento” só comece a aparecer na documentação colonial quando ele ganha sentido econômico, indo além da “subsistência” para se converter em mercadoria, “pão de boca” para os que vão à procura das minas.

A mandioca, ao contrário, sabemos que consumia excessivo tempo até assumir formas úteis alimentares. Isso é tão relevante que o Pe. João Daniel, autor setecentista do famoso Tesouro Descoberto no máximo rio Amazonas, dedica o segundo volume da sua obra a argumentar as vantagens civilizatórias que adviriam da substituição, na Amazonia, da mandioca pelo milho, embora os indígenas da região recusassem esse alimento. Esta, porém, é outra questão.

Da canjica à farinha de milho

Voltando ao trabalho de Rafaela Basso, temos uma análise sutil da documentação, inclusive o esforço de entendimento dos “silêncios” decorrentes de o milho e as ferramentas relacionadas com a sua transformação (o pilão) não constarem, por exemplo, dos inventários e testamentos.

Inicialmente, no século XVII, a forma de incorporação do milho à dieta lusa será muito semelhante aos usos dos tupi-guaranis, com destaque para a canjica. Lê-se numa fonte: “ajuntando em um prato bananas, batatas, canjica e carne, que então lhe puseram na mesa, misturou tudo de sorte que a confusão dos sabores só podiam concordar em uma quinta essência de mortificação; e para que não faltasse a esta nova iguaria algum acepipe, lhe espremeu um limão, adubando também o azedo desta fruta àquele guisado”.

O milho simplesmente quebrado em diferentes texturas fornece da canjica ao fubá para o angu, passando pela quirera que se ministra aos animais. O pouco valor desse alimento advém justamente disso: alimento de escravos índios ou animais, à qual não se conforma a elite aportuguesada que prefere a farinha de mandioca, mais próxima dos ideias metropolitanos do pão branco.

“Sustento parco e vil, rezando as mais das vezes feijão e canjica, guisado especial de São Paulo”, aproxima o colonizador do colonizado. Embora se cultive o trigo, a triticultura não consegue se impor. E teremos, ainda, uma especialização espacial, opondo o planalto à beira mar, “a zona da farinha de mandioca, abrangendo a vertente marítima, e a zona da farinha de milho, que se estende por toda a região de serra-acima”.

Mas a farinha de milho só aparecerá mesmo é no século XVIII, associada às expedições para as minas, como mantimento produzido para essa finalidade, incorporando novas tecnologias no preparo, como os monjolos trazidos de Portugal ou por aqui improvisados. “Lança-se o milho aos pilões a quebrar, e quebrado, que é o mesmo que tirar-lhe o casbabulho de fora, limpo dele, se deita de molho, por cinco ou seis dias em água fria, onde azeda alguma coisa. Passados estes dias, se tira e deita nos pilões, segunda vez, onde se soca, mói e desfaz, e dali tira e lança em uns fornos de cobre ou tachos, onde se torra e fica servido de alimento como pão”.

E desta farinha, que os índios já conheciam mas que adquire impulso econômico na fase da mineração e uso dos monjolos, “enquanto não é torrada se faz cuscuz que nas minas supre a falta do pão de trigo”.

A gastro-sociologia do milho

Talvez o aspecto mais interessante da tese de Rafaela Basso - além da reconstrução documental de um uso para o milho no século XVII e outro no século XVIII - seja o tratamento que dá à inserção do produto ameríndio na culinária dos conquistadores, portadores de uma cultura européia bem distinta.

Converge o milho para usos em ensopados e papas, como as preparações européias, gerando o angu de fubá, o curau, a pamonha... Mas a comida de escravos (angu) não é muito apreciada pelos reinóis; sendo que o milho bem se adapta aos bolos e outros doces e assados, penetrando por essa via na cozinha “branca” pelo receituário europeu. A farinha de milho, o verdadeiro pão da minas, escapará a essa dicotomia e, com feijão e toucinho, comporá o virado paulista, de larga e geral aceitação até hoje.

O gosto, validando uma hierarquia de usos e aceitação, consolida a incorporação do milho na dieta paulista, ao lado de outros produtos, como o trigo e a mandioca. Só ele, porém, favorece o sertanismo, possibilita a mobilidade que é a base da economia local, impondo-se pela praticidade frente à preferência pelo trigo, ou mesmo pela mandioca, ambos produtos mais ligados à vida sedentária das aglomerações urbanas.

A “cultura paulista do milho” que Rafaela procura retratar, se não corresponde exatamente à “civilização do milho” de Sergio Buarque de Holanda, não deixa de ser um refinamento da tese desse historiador, clareando como esse “produto básico e indispensável para a cozinha de São Paulo” fez de um cereal indígena uma conquista definitiva para a civilização ocidental em expansão.

Estudos monográficos como esse, que surgem aqui e ali, desvinculados de qualquer programa sistemático de investigação sobre a culinária, que as nossas universidades deveriam patrocinar, adquirem, por isso mesmo, um valor tremendo. Só através da acumulação deles poderemos, algum dia, parar de papaguear os clássicos.

2 comentários:

André Borges Lopes disse...

Bem interessante a resenha, professor.
Eu me recordo de ter lido o Caminhos e Fronteiras do Sérgio Buarque na faculdade de História, no início dos anos 1980 – se não me falha a memória nas aulas da Profa. Laura de Mello e Souza. E me lembro bem da impressão causada por esse mergulho nas fontes primárias (tão diferente dos ensaios do Raizes do Brasil) e pela preocupação com os hábitos alimentares, com a idéia da "civilização do milho" no planalto paulista, em paralelo à da mandioca.
Agora fiquei curioso para conhecer essa rediscussão de conceitos na tese da Leila Algranti. Obrigado pela dica.

TatiLunardelli disse...

Gostei da dica...... Realmente concordo plenamente com o que você mesmo diz em A formação da culinária brasileira, que não deveríamos nos prender a divisões estabelecidas pelo IBGE, simplesmente porque temos o Brasil do milho e o Brasil da mandioca.

Trabalhar com fontes primárias é um privilégio para poucos e quase sempre proporciona belíssimos textos. Vide Laura de Mello e Souza, citada pelo André no comentário anterior.

Mas gostei mesmo da frase final........ "parar de papaguear os clássicos."

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