24/11/2012

A arte e o artifício


A gastronomia sempre evoca o artesanato. Só por isso é parente da “arte”. Uma afinidade bem antiga, embora muita gente pretenda que a gastronomia possa ombrear outras artes mais estabelecidas, como a musica, a escultura, etc.

Podemos imaginar que um escultor trabalhe com o mármore, a argila ou uma massa plástica qualquer. A matéria-prima será escolhida em função da forma que quer imprimir a ela. E na gastronomia?

O padeiro que faz o pão partindo da farinha muito bem escolhida, do fermento que ele mesmo cultivou e que tem lá suas técnicas muito pessoais de assar pode ser comparado, em “arte”, a aquele que utiliza os pré-mix fornecidos pela indústria de panificação. Certamente não.

O locavorismo e outras orientações em relação à escolha das matérias-primas colocam a gastronomia sempre como um começo absoluto. Recentemente comi um babá au rhun bem médio. A chef responsável disse que ainda estava experimentando a fermentação natural e ainda não havia encontrado o ponto que buscava para a massa. Fiquei pensando: mas por que fazer babá com fermentação natural? Certamente porque é um valor novo para o público.

Foi a gastronomia praticada por Adrià e seus seguidores que ombreou os produtos “naturais” com aqueles que saem da indústria direto para as cozinhas. Aditivos, espessantes, estabilizantes, novos fermentos, etc - tudo isso ganhou cidadania na gastronomia. O objetivo de “surpreender” e “divertir” deu tratos a uma pirotecnia responsável por efeitos sensitivos nunca antes experimentados.

Nesse contexto, que mal haveria em utilizar leite condensado, Nutella, mix de amidos ou qualquer outra coisa “pré-pronta”? Nenhum. Mas, com a relativização dessa corrente, após o fechamento de El Bulli, a gastronomia voltou aos velhos trilhos e se discute mesmo é a origem das matérias-primas, a possibilidade de utilização de espécies vegetais (e animais) nunca antes exploradas e assim por diante.

Uma “ética ambiental” também acompanha essa busca pela inovação. De onde vem isso ou aquilo, em que relações sociais está imersa? - e assim por diante. Só isso explica, por exemplo, o sucesso do discurso sempre repetido de Carlo Petrini. 

Uma nova maneira de se relacionar com o próprio oficio vai se impondo para os cozinheiros. Na nova política de busca da “arte gastronomica” estão crescentemente excluídos aqueles insumos industriais que acabam por nivelar todas as criações. Por exemplo, um simples pudim de leite, ao ser feito com leite condensado, diminui a possibilidade de quem o faz expressar sua criatividade ou seu apuro técnico. Pesquisas como aquelas em torno do “cupulate”   estão mais alinhadas com as exigências dos novos tempos.

É claro que todos são livres para fazerem o que quiserem. Inclusive pudim de leite condensado. Mas o “fast and easy cooking” é algo que não pertence ao campo das artes gastronomicas - seja lá o que se entende por isso. Pertence ao universo da indústria, que usa dos cozinheiros para poder ofertar seus produtos ao público. 

A crítica, é claro, também se confunde sobre isso. É capaz de indicar um “melhor pudim” com leite condensado; um “melhor sorvete artesanal” quando é feito com pré-mix, e assim por diante.  De minha parte, já disse que sou de opinião de que a gastronomia é filha do artesanato. Nela não cabem leite condensado, nutella, pre-mix e assemelhados. No começo são “brincadeiras”, mas elas se instalam no coração do trabalho culinário e vão corrompendo a inteligência, a pesquisa e a experimentação.

2 comentários:

Anônimo disse...

Este é um tema repleto de contradições. Até onde vai o limite do artesanal e do industrial? Por sua lógica, já que o fermento deve ser artesanal, a farinha de trigo que o padeiro usa também não deveria ser uma farinha industrial, deveria ser uma farinha artesanal não é mesmo? O ritmo de uma cozinha que precisa atender uma quantidade grande de clientes vai exigir sempre soluções pré-fabricadas para agilizar o trabalho. Afinal, nem todos os restaurantes podem se dar ao luxo de ter mais de 100 funcionários.

e-BocaLivre disse...

Sem dúvida, anônimo, é disso mesmo que se trata. Onde cada chef passa a régua e começa o seu próprio trabalho. Não vejo trabalho digno de nota no pudim de leite condensado, no uso de pré-mix para pão. Nem acho o fermento artesanal imprescindível. Portanto, a discussão está mesmo nesse ponto. É uma preliminar para podermos apreciar o esforço criativo de cada chef. E lembre que, como dizia Bocuse, ao se trocar de moleiro temos que adaptar todas as receitas com farinha ao novo produto... É esse tipo de trabalho, que repousa em matérias-primas tão diversas, que constitui o específico do ofício artesanal.

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